domingo, 17 de outubro de 2021

Elio Gaspari - Sergio Moro precisará se reinventar, FSP

 Em 2017, no apogeu da Operação Lava Jato, o juiz Sergio Moro parecia ter tudo para disputar a sucessão de Michel Temer. Pela primeira vez na história da República, havia mandado para a cadeia grandes empresários e um ex-ministro da Fazenda que se revelaram criminosos confessos. Condenou o ex-presidente Lula que foi para o cárcere protestando inocência. Com a ajuda de um tuíte do comandante do Exército, evitou-se que o Supremo Tribunal Federal lhe concedesse um habeas corpus.

Aquele juiz desconhecido de Curitiba surpreendeu o país. Passou o tempo e ele produziu novas surpresas. Divulgou a colaboração do comissário Antonio Palocci às vésperas da eleição de 2018 e, poucos meses depois, aceitou o cargo de ministro da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, que haveria de fritá-lo.

Entre o apogeu e o ocaso, a própria Operação Lava Jato teve expostas algumas de suas truculências e umas poucas boquinhas. Passou o tempo, Lula prevaleceu em mais de uma dezena de processos, enquanto o juiz de Curitiba teve sua parcialidade apontada pelo Supremo Tribunal Federal. A Lava Jato revelou-se um desengano, se acabou na quarta-feira e pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se sorri.


Depois de uma temporada numa banca americana de litígios, Moro está no Brasil, conversando em torno da hipótese de vir a ser candidato na eleição do ano que vem.

Ele enriquecerá o debate, mas para isso terá que se reinventar, pois o juiz de Curitiba empobreceu a luta contra a corrupção em Pindorama. Seus meios revelaram-se catastróficos e sua ida para o governo de Bolsonaro tisnou-lhe a biografia. Seu silêncio desde que deixou o ministério agravou essa situação.

Muitos anos antes de se tornar um exemplo de moralidade, Moro se apresentava como alguém capaz de destruir um sistema político azeitado pela corrupção. Veio, viu e perdeu. O governo que ajudou a eleger gravita em torno das mesmas figuras que davam (e recebiam) as cartas antes da Lava Jato.

Para que aquele juiz de Curitiba se apresente, reinventado, como um nome que encarne o que se chama de terceira via, o doutor precisa dizer para onde vai essa via. O ponto final da rota do último Moro foi o fenômeno Jair Bolsonaro, com seus subsidiários, como o juiz carioca Wilson Witzel.

Na sua fase de esplendor, Moro parecia reeditar a Operação Mãos Limpas da Itália. Seu críticos lembraram que a “Mani Pulite” produziu Silvio Berlusconi, um palhaço corrupto. A bem da justiça deve-se registrar que nenhum dos juízes italianos aninhou-se no governo do histrião. Moro tornou-se ministro da Justiça de Bolsonaro e deixou-se fritar em relativo silêncio.

Em 2022, como em 2017, pode-se fazer de tudo por Sergio Moro, menos o papel de bobo.

Bolsonaro não é fascista, é um psicopata perigoso, diz autor de relato sobre tortura, Karla Monteiro, FSP

 

“Para que entendas o que eu não consegui esquecer”: a dedicatória de Flávio Tavares ganha outra profundidade, outra dimensão, quando se termina de ler o visceral “Memórias do Esquecimento”, vencedor do Jabuti de 2000. Página a página, a dor, a incredulidade, o desatino de um país que perdera o rumo. Quando ele assinou o meu exemplar, estávamos em seu apartamento, no Morro do Cristal, em Porto Alegre.

Um frio danado, cortante, ventoso. E o velho jornalista, aos 87 anos, ali de pé, ereto, mostrando-me a deslumbrante vista do Guaíba. “Dói-me na carne”, disse-me, ao enveredarmos para o assunto incontornável: Jair Bolsonaro. “Do ponto de vista da governança, os militares tinham plano, projeto de governo. Até houve coisa boa. Agora, não. Estamos sendo governados diretamente pelo porão”.

De porão, Flávio entende. Lançado três décadas após o golpe militar, “Memórias do Esquecimento” é um livro fundamental, pelo registro histórico e pela qualidade literária. Com maestria, abandonando a linearidade, o autor de mão firme nos conduz à intimidade do cárcere, ao subterrâneo dos sentimentos de quem é torturado, despido da condição humana. Uma obra que vai além dos fatos, sem, no entanto, perder de vista o contexto da luta armada.

Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Entre os guerrilheiros, o jornalista Flávio Tavares
Guerrilheiros trocados em 1969 pelo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, posam para foto em frente ao avião Hércules 56, da FAB. Entre os guerrilheiros, o jornalista Flávio Tavares - Divulgação

“Em junho de 1964, menos de dois meses e meio após o golpe militar, fiz 30 anos e me senti um velho despedaçado, massacrado pelo peso de ser obrigado a calar-se e pela sensação de começar a viver entre muros, observado, vigiado, fiscalizado. E, portanto, mandado”, escreveu, ao refletir sobre os quês e porquês de sua opção – ou falta dela: “Daí em diante, o caminho para aderir ou participar da resistência tornou-se cada vez mais curto e mais natural. De fato, não fiz uma opção política: tive uma reação moral”.

Biografia de um guerrilheiro

Enquanto conversamos, penso em sua biografia: como sobreviveu? Já o conhecia, havíamos nos encontrado alguns anos antes, no Rio, quando eu ainda trabalhava no livro de Samuel Wainer. Como muitos de sua geração, fora formado pelo Última Hora, o jornal que Wainer fundou em 1951. Por anos, assinou a mais importante coluna de política do diário.

Na manhã de 6 de agosto de 1969, a casa caiu. De jornalista respeitado a subversivo procurado, acabou preso, levado para o quartel da rua Barão de Mesquita, no centro do Rio. Foram 30 dias de intensa e ininterrupta tortura. Na última noite que passou lá, dividiu a solitária escura com um cadáver.

A liberdade viria com o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, numa ação espetacular das organizações MR-8 e ANL. Entre os 15 presos políticos trocados pelo embaixador, estava Flávio, ao lado de nomes conhecidos da luta armada, como José Dirceu e Wladimir Palmeira.

Sua saga, porém, não terminou quando voou para o México, a bordo daquele avião militar. Em 1977, caiu de novo, agora nas mãos da sangrenta ditadura vizinha: “Olhos vendados e mãos algemadas dia e noite, estive sequestrado pelo Exército uruguaio, em Montevidéu, a partir de julho de 1977 (...). Eu voltava a ser o prisioneiro que devia habituar-se a não ser nada”.

Nas memórias, uma passagem particularmente emocionante. Da dignidade inabalada, contra todas as expectativas. Do Rio, rumo ao México, decolaram 13 dos 15 presos. “Já noite, chegamos a Recife. Ninguém nos diz, mas todos deduzimos que a escala é para recolher Gregório Bezerra”.

O velho Gregório Bezerra, aos quase 70 anos, era o preso mais antigo da ditadura. Em 1964, fora obrigado a desfilar pelas ruas da capital pernambucana, com uma corda no pescoço, arrastado por um jipe. Líder das revoltas camponesas dos anos 50 e 60, o velho comunista, ex-sargento do Exército, tornara-se o mártir do regime.

“Em silêncio, petrificados, aguardamos um homem alquebrado e quase deixamos de respirar quando o vemos entrar. Ereto e rijo, todo branco como um anjo alvo, ele caminha em nossa direção: cabelo branco, camisa branca, calça branca, alpercatas sertanejas de couro branco. (...) Gregório se ajeita no banquinho de lona, defronte ao meu, me olha e sorri”.

Ao todo, Flávio escreveu sete livros, ganhou muitos prêmios, entre estes dois Jabutis. São relatos pessoais e memorialísticos, que, juntos, compõem o quebra-cabeça do século 20. Antes de deixar sua casa, eu lhe perguntei como se sentia vendo ocupar o Palácio do Planalto, que ele cobriu como jornalista durante os governos JK e Jango, um presidente que celebra o torturador Brilhante Ustra.

“Estamos no caos pelo caos, fazendo elogios ao absurdo. O Bolsonaro não é fascista. Os fascistas carregavam uma ideia de país. Ele é um psicopata perigoso”.