A Câmara dos Deputados, incumbida de iniciar processo de impeachment, e a Procuradoria-Geral da República, com dever de investigar evidências de crimes comuns, estão trancadas pelo momento. A dupla de carcereiros diz ter o monopólio das chaves e submeteram a democracia ao regime de lockdown. Não o sanitário, mas o institucional. A manobra jurídica tem sido tolerada pelos Poderes Legislativo e Judiciário. E mal compreendida por nós.
Lira afirma, diante do oceano de provas que a CPI consolida, e se não bastassem meio milhão de mortes por deliberada ação e omissão governamentais, que “impeachment exige mais que palavras, exige materialidade” e não poderia “fazer impeachment sozinho”.
Bolsonaro retribuiu: “Não são três Poderes, são dois, Arthur. É o Judiciário e nós para o lado de cá, porque nós formamos ‘heteramente’ um casal.” Um afeto sob o molho do centrão.
Aras atua como espécie de porta-voz extraoficial do governo: “Bolsonaro defendeu o que achava ser melhor para o país”, “não houve falta de ação do governo para compra de vacinas”, “não cabe à PGR denunciar Bolsonaro por prevaricação”. Mas, ao contrário de porta-vozes oficiais, tem o poder de bloquear investigações que atormentem o presidente.
Sua omissão é mais holística e tecnicamente dissimulada. Demanda muita ação, muito palavrório técnico, muita “averiguação preliminar” para dormitar na gaveta e morrer no arquivo e, quando sob pressão do STF, instauração de inquéritos sem dentes.
Há como forçá-los a agir? Há como responsabilizá-los pela omissão? Se não politicamente, ao menos juridicamente?
Um guia dos perplexos em direito constitucional e política brasiliense precisa dar respostas a essa angústia. Arthur Lira e Augusto Aras confiam deter poder monocrático absoluto e irrecorrível.
Juridicamente, pelo menos, não têm. Furar o bloqueio requer inteligência jurídica e coragem política, se o STF puder nos premiar com alguma. Lá o cadeado se destranca. Ou não.
Lira (como Rodrigo Maia e Eduardo Cunha) pensa poder ficar em silêncio, por prazo indefinido, sobre os mais de 120 pedidos de impeachment na gaveta. Aproveita esse poder inventado como artifício de chantagem contra o presidente. Recusa-se a indeferir porque sabe que o plenário pode revertê-lo. Transforma dever burocrático em escolha discricionária.
Esse poder de nada fazer não está previsto na Constituição nem na Lei do Impeachment nem no Regimento Interno da Casa. Seu papel legal se limita a verificar presença de requisitos. Assim como um guarda de trânsito não tem poder de não multar se as exigências formais estão ali. Pode deferir ou indeferir, não ficar calado, usurpar poder do plenário e submeter a democracia ao seu capricho.
O STF não pode substituir o presidente nem o plenário da Câmara. Mas pode exigir que Lira cumpra o dever de tomar uma decisão, seja qual for. Função judicial elementar, não extravagante.
Aras se beneficia de um buraco no sistema acusatório brasileiro. Esse sistema divide tarefas entre Ministério Público e Judiciário: promotores investigam e acusam, juízes decidem. Se promotores pedem arquivamento, juízes não podem pegar o caso com as próprias mãos.
Contudo, o Código de Processo Penal exige que arquivamentos sejam encaminhados para “instância de revisão ministerial” (artigo 28), onde o arquivamento poderá ser confirmado ou rejeitado, indicando-se novo promotor se for o caso.
O único promotor do país a não se submeter à revisão do Ministério Público é o procurador-geral. E pode usar desse poder para chantagear o presidente e exigir contrapartida. Por exemplo, cadeira no STF.
O STF aceitou a aberração mas pode reformar a jurisprudência para exigir do Ministério Público Federal cumprimento da lei de processo penal. Que haja instância revisora do colaboracionismo orgulhoso do PGR.
Há saídas, e elas não se confundem com ativismo judicial. Apenas com interpretação constitucional.