quarta-feira, 19 de maio de 2021

A arte de fazer perguntas, Ruy Castro, FSP

 Nas últimas semanas, recorri à minha já quase secular trajetória pela imprensa para cometer dois artigos (“Perguntas à queima-roupa”, 7/5, e “Pequeno manual para a CPI”, 12/5), em que tentei passar a possíveis interessados —os senadores da CPI da Covid, por exemplo— algumas dicas sobre como fazer perguntas. Afinal, é delas que vivem os jornalistas, e alguns tiveram a sorte de trabalhar em veículos em que a entrevista era uma grande atração.

Um deles, a antiga Playboy, cujas entrevistas passavam tal seriedade que mesmo os mais alérgicos a elas, como Frank Sinatra e Miles Davis, aceitaram concedê-las. A própria edição brasileira, em sua melhor fase, nos anos 80 e 90, entrevistou empresários, candidatos à Presidência e até suas maiores inimigas: as feministas. E por que eram tão boas as entrevistas de Playboy? Porque seus repórteres tinham cláusulas pétreas a seguir na elaboração da pauta e na sua aplicação. Eis algumas.

Preparar-se para a entrevista como se fosse a última que o sujeito daria em vida. Ler sobre ele para aprender tudo que se sabia a seu respeito, para perguntar justamente sobre o que não se sabia. Fazer uma pauta com centenas de perguntas, com perguntas alternativas entre uma e outra, como repique à pergunta anterior.

Nunca fazer duas perguntas ao mesmo tempo —faz-se a primeira e mantém-se a seguinte engatilhada. Ficar atento à resposta para possíveis buracos e ir a eles em seguida. Nunca cortar ou se intrometer numa resposta —afinal, o camarada está ali para falar. Em caso de súbito branco numa resposta, nunca tentar “ajudar” o entrevistado —ele que se obrigue a preenchê-lo e, ao fazer isso, dirá o que não queria.

E, se o entrevistado mentir, nunca chamá-lo de mentiroso na lata, claro, mas fazer com que ele perceba logo que você não se deixou tapear. Afinal, os repórteres, ao contrário da CPI, não têm poder de prisão.


No Oriente Médio, uma guerra sem saída, Hélio Schwartsman, FSP

 Já acreditei que o processo de paz entre israelenses e palestinos baseado na ideia de dois Estados teria sucesso. A ducha de água fria não foram as negociações frustradas de Camp David (2000) ou Annapolis (2007), mas a leitura de "The Two-State Delusion" (a ilusão dos dois Estados, de 2015), de Padraig O'Malley.

Uma nota biográfica é necessária. O'Malley é um especialista em negociações de paz. Ele não só estuda conflitos que um dia pareceram insolúveis como ajuda a encontrar uma saída para eles. Participou dos processos de pacificação na Irlanda do Norte e na África do Sul. Depois, se debruçou sobre o conflito israelo-palestino —e foi derrotado por ele. As conclusões a que chegou estão no livro, que é bem lúgubre.

O ponto central de O'Malley é que as narrativas israelense e palestina são inconciliáveis. Ambos os lados se veem como vítimas em um embate imemorial e não admitem que outros possam ter uma visão diferente, a menos que estejam mal-intencionados. Pior, o conflito virou um modo de vida para lideranças locais e uma espécie de vício para as populações.

Uma ilustração banal e significativa disso ocorreu quando respeitados educadores israelenses e palestinos tentaram elaborar um livro didático de história que pudesse ser usado nas escolas dos dois lados. Não conseguiram. Não havia como desarmar e aproximar as narrativas.

Penso que situação até piorou de 2015 para cá. Até alguns anos atrás, a paz ao menos era um tema importante em pleitos israelenses, dividindo o eleitorado. Não é mais. Os israelenses simplesmente deixaram o assunto de lado. E não só os israelenses. Vários países da região também abandonaram a ideia de unidade árabe e o apoio à causa palestina para firmar acordos de cooperação com Israel.

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Não digo que seja impossível mesmo no futuro distante, mas ninguém jamais perdeu dinheiro por apostar contra ela no conflito israelo-palestino.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Crença em kit covid ilustra dificuldade em aceitarmos mudanças na nossa visão de mundo, OESP

 Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo

17 de maio de 2021 | 05h00

Quando Albert Einstein bolou a teoria da relatividade geral, acreditava-se que o universo era estático. A teoria trazia uma implicação perturbadora, no entanto: de acordo com ela, o universo seria dinâmico. Com isso, Einstein inseriu em sua equação um novo parâmetro, que chamou de Constante Cosmológica, corrigindo esse “defeito”. O problema é que, posteriormente, a ideia de um universo estático foi modificada pela hipótese de que ele estaria se expandindo, o que, para espanto do próprio Einstein, era coerente com sua formulação original. Ele relutou a aceitar que estava certo inicialmente e que sua correção era um erro, até que se comprovou por meio da observação a expansão, levando o físico a declarar que aquele fora a maior estupidez de sua vida.

Mesmo sem saber, todos nós fazemos exatamente o que ele fez: encontramos uma forma de dar um jeitinho de salvar nossas hipóteses e manter nossas crenças. Quando a ciência contradiz nossa visão de mundo, é difícil – até mesmo para um gênio como ele – aceitar que errados estamos nós, não os resultados. A história da ciência é pródiga nesses exemplos. O importante neurologista Paul Broca acreditava que os negros eram menos inteligentes que os brancos e tentava provar isso medindo crânios de cadáveres. Quando as medidas não confirmavam o que esperava, ele mudava a forma de medir e reinterpretava os dados até endossar seus pressupostos.

O triste episódio nacional da crença em remédios para covid-19 é só mais um a ilustrar o abuso das hipóteses ad hoc. Inicialmente, ela foi proposta para casos graves. Diante do fracasso, passou a ser defendida para casos leves. Quando resultados negativos começaram a surgir, o argumento era que faltava associação com antibióticos. Depois, vitamina D, zinco. E assim por diante. Ad hoc em latim significa literalmente “para isso” – ou seja, são hipóteses acrescentadas não como decorrência lógica da teoria, mas para um fim: corrigir seus defeitos diante dos testes de realidade, na tentativa de salvar a hipótese.

Medicamentos como a ivermectina e a hidroxicloroquina não têm eficácia comprovada contra a covid-19 Foto: Gerard Julien/ AFP

Por mais que multidões hoje critiquem a turma que ainda defende o tratamento precoce, que jogue a primeira calculadora aquele que não cometeu o mesmo pecado. Muitos que desdenham dos falsos tratamentos para a covid-19 não chegam tão longe a ponto de criticar a homeopatia. Nos EUA, uma lei obriga os remédios homeopáticos a virem com advertência de que não há evidências científicas para seu uso; na Austrália, as pesquisas com tais substâncias já foram abandonadas, tamanho o grau de comprovação de sua ineficácia. Mas aqueles que aderem à prática não são tão defensores da ciência quando ela se volta contra suas crenças. Ou criam suas hipóteses ad hoc – não foram testes completos, seriam necessárias pesquisas individualizadas etc.

Tais resistências vêm em diferentes sabores. Como as vitaminas vendidas em mercado. Já está mais do que comprovada a inutilidade de dar suplemento vitamínico para quem delas não tem deficiência. Mas experimente dizer para os consumidores que do ponto de vista científico eles estão jogando dinheiro no lixo e despejando vitamina pelo esgoto e verá a defesa da ciência virar ataque num átimo. Se adentrarmos a seara da vitamina D, então, a conversa pode até virar briga. Obviamente sua deficiência grave leva a doenças como raquitismo ou fraturas patológicas, mas critérios arbitrariamente definidos para os valores normais levam as pessoas a acreditar que estamos vivendo uma pandemia de falta dessa vitamina, atribuindo à sua questionável falta um sem número de problemas. Ela foi alçada à posição de panaceia do século 21, e para muitos quando a ciência ameaça derrubá-la desse pedestal, errada está a ciência.

Paciência. Os fatos são o que são, independentemente se gostamos deles ou se os enxergamos como são. A ciência está longe de ser um empreendimento perfeito, mas pelo menos é um meio com autocorreção e até hoje o que se mostrou mais preciso para nos aproximar dos fatos. Todos somos como Einstein na hora de tentar salvar nossas hipóteses. Mas poucos, muito poucos, somos como ele na hora voltar atrás e reconhecer que estávamos errados. 

É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’