domingo, 15 de novembro de 2020

Vivemos um surto de ageísmo sem precedentes, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Anita Liberalesso Neri

Professora titular do departamento de psicologia médica e psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e ponto focal do Centro Internacional da Longevidade (ILC) no Brasil para etarismo.

Ageísmo ou etarismo são termos relativamente novos, mas o fenômeno é tão antigo quanto os conflitos de interesses entre jovens e velhos, em torno de poder, prestígio e bens materiais.

Em todos os tempos e latitudes, em ocasiões de crise, privação e perigo iminente, os adultos não hesitam em dar prioridade às crianças e aos jovens porque são a esperança de continuidade do grupo.

Só depois, se possível, tratam de proteger e carregar consigo os idosos. Com o tempo, a aceitação desse imperativo passou a integrar os atributos esperadas nos idosos.

homem idoso e baixo, de costas, caminha sozinho por uma rua larga de paralelepípedos, em um dia nublado. ele veste um casaco largo e marrom e uma cartola da mesma cor
Idoso caminha em rua da pequena cidade de Cambará do Sul (RS) - Eduardo Knapp - 27.mai.2016/Folhapress

Em função do ageísmo, idosos recebem tratamento diferencial e têm acesso desigual a oportunidades e a direitos sociais, com base no critério de idade e na falsa crença em que todos os velhos são frágeis, desamparados, lentos, dependentes e improdutivos, um peso para a sociedade.

Uma variante da intolerância, o ageísmo é intensificado pela pobreza, pela desigualdade social, pelo baixo nível educacional, pelo gênero e pela cor da pele de boa parte dos idosos.

É potencializado pela tendência de negar a velhice porque nos lembra da morte, mas sobretudo da dependência, da perda de identidade, e da invisibilidade que muitas vezes acompanham o envelhecimento.

O ageísmo é internalizado pelos idosos, que aceitam como naturais os tratamentos discriminatórios, desrespeitosos, paternalistas, compassivos ou falsamente positivos que recebem das leis, das instituições sociais, dos serviços públicos e privados, dos meios simbólicos e das redes sociais.

Com a pandemia Covid-19, estamos vivendo um surto de ageísmo, que acentua a divisão entre jovens e velhos e culpabiliza estes últimos por onerar o sistema de saúde e desviar recursos do atendimento aos jovens e produtivos.

A pandemia está suscitando questões éticas do direito à vida, da legitimidade da destinação de ajuda aos idosos, da necessidade de fazer escolhas com relação a quem deve viver e quem deve morrer, e da priorização da vida ou da economia.

O ageísmo intensifica o envolvimento emocional e a polarização de opiniões com relação dilemas éticos. Ajuda a gerar discursos de ódio e escárnio e alimenta a permanente confusão e a premeditada crise geradas por líderes políticos que desorientam a população, menosprezam a ciência e não demonstram a menor empatia ou compaixão pelo destino das pessoas, em especial os idosos.

O que está acontecendo pode ter consequências duradouras para as atitudes em relação aos idosos, que no futuro poderão ser ainda mais prejudicados por políticas e práticas sociais discriminatórias.

cultura do cuidado, da solidariedade intergeracional e da velhice estão em risco, é uma boa hora para debater essas questões, influenciar o discurso público e modificar as práticas sociais em relação à velhice.

Reinaldo José Lopes - Macacos, palmitos e dominós, FSP

 

Se você quer uma imagem do que está acontecendo neste momento na mata atlântica (um dos ambientes mais ricos e ameaçados do nosso continente, retalhado até sobrar apenas 12% de sua extensão original, boa parte disso em pequenos fragmentos de floresta), pense numa imensa fileira de dominós tombando, derrubando uns aos outros numa reação em cadeia.

Cada dominó que desaba é uma relação ecológica —um elo natural entre diferentes espécies que está sendo perturbado por décadas ou séculos de imprevidência humana.

No interior do Rio de Janeiro, pesquisadores identificaram uma dessas peças caindo, e dá para resumir a bagunça com uma equação simples: macacos-pregos menos predadores é igual a palmitos dizimados.

Essa história está contada com clareza admirável em artigo na revista científica Biological Conservation, assinado por Rita Portela, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Rodolfo Dirzo, da Universidade Stanford (Estados Unidos).

Macaco de boca aberta
Macaco-prego-preto (Sapajus nigritus) - Ernesto Bastos Viveiros de Castro

Por ironia, o desequilíbrio que levou ao colapso populacional da palmeira conhecida como juçara (Euterpe edulis) está acontecendo justamente numa área de mata onde está uma das raras populações protegidas de mico-leão-dourado, espécie-símbolo das ameaças à mata atlântica.

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Trata-se da Reserva Biológica de Poço das Antas, com cerca de 5.000 hectares de floresta (para os padrões atuais do bioma, uma imensidão, embora seja só um pedacinho do que havia em tempos pré-cabralinos). O que acontece é que animais que normalmente comeriam primatas — harpias, gaviões, onças e jaguatiricas — praticamente desapareceram da região.

Ao menos no curto prazo, isso tem sido uma maravilha para a população de macacos-pregos-pretos (Sapajus nigritus) da reserva. Em Poço das Antas, a densidade populacional dos bichos hoje é de 66,2 macacos por quilômetro quadrado, ou mais de quatro vezes o que se vê em outros fragmentos florestais grandes da mata atlântica.

Portela e Dirzo examinaram as interações entre os primatas e as palmeiras entre 2005 e 2015, acompanhando centenas de exemplares de juçara nesse período. Os macacos-pregos são fãs tão ardorosos do palmito juçara quanto certos seres humanos, e as plantas atacadas por eles invariavelmente morrem (e, pelo tipo de dano à planta, fica claro quando o palmito foi devorado por macacos, e não por pessoas).

“Eles são bem diferentes de outras populações, parecem mais espertos e mais curiosos”, contou Portela à Folha.

Quem paga o pato dessa curiosidade são as palmeiras: de 2005 para 2015, a população da espécie vegetal caiu de 839 palmeiras para apenas 152 nos locais estudados —na fase final do período, a taxa de declínio era superior a 30% ao ano.

É perfeitamente possível que outros dominós caiam por causa desse cenário —diversas espécies de vertebrados comem os frutos da palmeira, por exemplo.

Por isso, é importante que esses e outros locais da mata atlântica voltem a abrigar predadores. Uma boa opção, diz Portela, seria reintroduzir ali o gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus), grande caçador de filhotes de primatas, que poderia ajudar a trazer a população de macacos-pregos de volta a níveis mais controlados.

Histórias como essas muito provavelmente estão acontecendo em todos os cantos da mata atlântica. Não poderia haver lembrete mais claro de como andamos arrancando os fios de um tecido cuja trama estamos muito, muito distantes de compreender.

Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

Antonio Prata O vento está mudando?, FSP

 14.nov.2020 às 23h15

Se não me engano, a derrota do Trump é o primeiro carinho que a realidade nos faz desde 2013. Foram sete anos de penúria, como no Egito, sem ao menos um José para soprar no ouvido do faraó: “Se liga, Farazêra, vai dar ruim! Essas passeatas aí por vinte centavos vão terminar com skinheads na Paulista, banheiro químico arremessado às chamas no meio da Avenida Tiradentes e famílias ‘de bem’ com husky siberiano vestindo camisa do Neymar fazendo selfie diante de blindado do Choque.

Depois virá o desastre econômico do segundo governo Dilma, o 7 x 1 pra Alemanha, o golpe travestido de impeachment —com voto dedicado a torturador— mais pindaíba econômica, MarianaBrumadinho, o fundo do poço na eleição do Trump e o ralo no alçapão das profundezas do poço com a eleição do Bolsonaro. Tá bom, Faralíssimo? Não? Quer mais? Então toma: Amon-Rá vai pegar todos esses ingredientes nefastos e gratinará sob uma espessa camada de pandemia. 2020 será o ano do escondidinho —em casa”. Foi tanto tiro, porrada e bomba que, quando o Pentágono divulgou imagens do que acredita ser um disco voador, ninguém deu a menor bola.

Até que o Trump perdeu. No discurso da vitória do Joe Biden, ouvindo-o falar sobre o respeito a negros, gays e trans, tomei um susto. Será que o mundo está finalmente despiorando? Será que um dia, num futuro próximo, ele pode até, quem sabe, assim, digamos, melhorar? Imagina que louco criar filhos num mundo que está melhorando? Um mundo caminhando para ser menos desigual, menos preconceituoso e capaz de parar com a emissão dos gases do efeito estufa? Imagina?

Pois tem um pessoal aí que está imaginando. Na quinta-feira, a página de quadrinhos da Folha, sempre ácida e combativa, parecia ter tomado Rivotril. Na segunda tira, do Caco Galhardo, uma mulher deitada na praia recebia uma lufada de vento com os dizeres “um sopro de esperança”. Mais abaixo, Adão Iturrusgarai desenhou uma águia-Tio-Sam levando Bolsonaro pra longe. E, na última tira, Estela May fez uma moça sentada na Lua, sob a frase: “De repente me sinto novinha em folha”. (Não sei se tem alguma ironia aí, pelo fato de a Estela ter apenas 20 anos e publicar na Folha, mas preferi ler na chave Fênix: a esperança ressuscitando).

Ilustração de menina negra sorrindo e vestindo uma camiseta com listras coloridas. Há uma textura em vermelho aplicada sob a ilustração
Adams Carvalho/Folhapress

Após a divulgação dos resultados, nos Estados Unidos, o comentarista da CNN, Van Jones, chorou. Disse que durante os últimos anos não foi apenas o George Floyd, sufocado por um policial, quem não conseguia respirar. Concordo. No Brasil, também, o ar esteve pesado, quente e úmido como o de um desses dias insanos do verão carioca. Ser racista, machista, homofóbico, ogro, passou a ser visto como ser “sincerão”, “zoeiro”, “iconoclasta”. Ou, na palavra mais mal usada da década, “polêmico”. A burrice e a ignorância tornaram-se um valor. Mau-caratismo passou a ser vendido como sagacidade. Será que o vento está mudando?

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Cabe a nós mudá-lo. Hoje o Brasil vai às urnas. Quem sabe não conseguimos, com nossas escolhas, avançar um pouco rumo a um país mais igualitário, menos violento, racista, machista, homofóbico? Seria lindo ver Câmaras Municipais mais diversas, arejadas, além de assistir aos candidatos representantes da boçalidade ficando fora do segundo turno.

Quero muito poder acordar na segunda-feira repetindo as palavras do Van Jones, na CNN: “É mais fácil ser um pai, nesta manhã. É mais fácil dizer aos seus filhos que caráter é importante. Que falar a verdade é importante. Que ser uma boa pessoa é importante”.

Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”.