domingo, 15 de novembro de 2020

Reinaldo José Lopes - Macacos, palmitos e dominós, FSP

 

Se você quer uma imagem do que está acontecendo neste momento na mata atlântica (um dos ambientes mais ricos e ameaçados do nosso continente, retalhado até sobrar apenas 12% de sua extensão original, boa parte disso em pequenos fragmentos de floresta), pense numa imensa fileira de dominós tombando, derrubando uns aos outros numa reação em cadeia.

Cada dominó que desaba é uma relação ecológica —um elo natural entre diferentes espécies que está sendo perturbado por décadas ou séculos de imprevidência humana.

No interior do Rio de Janeiro, pesquisadores identificaram uma dessas peças caindo, e dá para resumir a bagunça com uma equação simples: macacos-pregos menos predadores é igual a palmitos dizimados.

Essa história está contada com clareza admirável em artigo na revista científica Biological Conservation, assinado por Rita Portela, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), e Rodolfo Dirzo, da Universidade Stanford (Estados Unidos).

Macaco de boca aberta
Macaco-prego-preto (Sapajus nigritus) - Ernesto Bastos Viveiros de Castro

Por ironia, o desequilíbrio que levou ao colapso populacional da palmeira conhecida como juçara (Euterpe edulis) está acontecendo justamente numa área de mata onde está uma das raras populações protegidas de mico-leão-dourado, espécie-símbolo das ameaças à mata atlântica.

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Trata-se da Reserva Biológica de Poço das Antas, com cerca de 5.000 hectares de floresta (para os padrões atuais do bioma, uma imensidão, embora seja só um pedacinho do que havia em tempos pré-cabralinos). O que acontece é que animais que normalmente comeriam primatas — harpias, gaviões, onças e jaguatiricas — praticamente desapareceram da região.

Ao menos no curto prazo, isso tem sido uma maravilha para a população de macacos-pregos-pretos (Sapajus nigritus) da reserva. Em Poço das Antas, a densidade populacional dos bichos hoje é de 66,2 macacos por quilômetro quadrado, ou mais de quatro vezes o que se vê em outros fragmentos florestais grandes da mata atlântica.

Portela e Dirzo examinaram as interações entre os primatas e as palmeiras entre 2005 e 2015, acompanhando centenas de exemplares de juçara nesse período. Os macacos-pregos são fãs tão ardorosos do palmito juçara quanto certos seres humanos, e as plantas atacadas por eles invariavelmente morrem (e, pelo tipo de dano à planta, fica claro quando o palmito foi devorado por macacos, e não por pessoas).

“Eles são bem diferentes de outras populações, parecem mais espertos e mais curiosos”, contou Portela à Folha.

Quem paga o pato dessa curiosidade são as palmeiras: de 2005 para 2015, a população da espécie vegetal caiu de 839 palmeiras para apenas 152 nos locais estudados —na fase final do período, a taxa de declínio era superior a 30% ao ano.

É perfeitamente possível que outros dominós caiam por causa desse cenário —diversas espécies de vertebrados comem os frutos da palmeira, por exemplo.

Por isso, é importante que esses e outros locais da mata atlântica voltem a abrigar predadores. Uma boa opção, diz Portela, seria reintroduzir ali o gavião-pega-macaco (Spizaetus tyrannus), grande caçador de filhotes de primatas, que poderia ajudar a trazer a população de macacos-pregos de volta a níveis mais controlados.

Histórias como essas muito provavelmente estão acontecendo em todos os cantos da mata atlântica. Não poderia haver lembrete mais claro de como andamos arrancando os fios de um tecido cuja trama estamos muito, muito distantes de compreender.

Reinaldo José Lopes

Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de "1499: O Brasil Antes de Cabral".

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