Em seu livro "Hinterlândia Carioca", publicado em 2012, Nei Lopes faz uma curiosa observação no verbete dedicado ao angu à baiana: "Até a época deste texto, não constava que fosse usual ou conhecido na Bahia". Quem diria: na Bahia não se faz angu à baiana.
Numa aquarela de 1826, Debret retratou as negras cozinheiras e vendedoras de angu nas ruas do Rio. O pintor francês arriscou uma receita do prato: além dos miúdos de boi, banha de porco, azeite-de-dendê, quiabo, folhas de nabo, pimentão, salsa, cebola, louro, sálvia, tomate, tudo cozido até adquirir consistência. Devia ser uma delícia.
Já a receita do angu do Gomes, vendido em barraquinhas entre os anos 50 e 80, é segredo. A sociedade de Basílio Augusto Moreira e João Gomes (filho do português Manoel Gomes, que teria "inventado" a iguaria) começou em 1955, na Central do Brasil, espalhando-se pela cidade. Aos 91 anos, Basílio morreu na quarta (23). O restaurante no largo da Prainha, tocado pelo seu neto, Rigo Duarte, continua aberto, mantendo a tradição citada por João Nogueira no samba "Espere, Oh Nega": "Porém, por enquanto, quando sentir fome/ Um angu do Gomes já dá pra enganar/ A digestão é caminhando à beira-mar".
Um dos carrinhos do Angu do Gomes que circulavam em ruas do Rio de Janeiro - Reprodução
O jornalista Ernesto Cony —o pai do romance "Quase Memória", de Carlos Heitor Cony— tinha uma teoria sobre o famoso prato e sua criação: "O Gomes não era Gomes. Nem baiano era, como se poderia supor. Era Vasconcelos e vagamente português, casara-se na Paraíba com uma Severina que lhe ensinou o macete do angu".
De qualquer maneira, o macete está salvo. O cartunista Jaguar —que em seus tempos de vacas magras sobreviveu à base dos miúdos de boi— garante que guarda a fórmula na memória. À qual acrescentou só um ingrediente: rodelas de tomate por cima. Se o freguês quiser, ele recomenda bagaceira antes, cerveja durante e Underberg depois.
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"Négresses cuisiniéres marchandes d'angou", aquarela de Debret de 1826 - Reprodução
Alvaro Costa e Silva
Jornalista, atuou como repórter e editor. É autor de "Dicionário Amoroso do Rio de Janeiro".
Faltando pouco mais de um mês para as eleições presidenciais, os Estados Unidos podem ver o atual presidente não reconhecer eventual derrota e se negar a fazer uma transição pacífica caso a eleição se decida com os votos pelo correio.
Trump foi questionado duas vezes, recentemente, se se comprometia com uma transição pacífica de poder se vier a perder as eleições; uma em entrevista à Fox News, em julho, e outra em entrevista coletiva na Casa Branca, na última quarta-feira (23). Nas duas ocasiões, preferiu não se comprometer. Na convenção do partido Republicano, em agosto, disse que só perderia a eleição se houvesse fraude.
Em 2016, mesmo tendo vencido, Trump acusou Hillary Clinton de ter se beneficiado de milhões de votos de imigrantes ilegais —alegação feita sem nenhum embasamento.
Mike Hisey com máscara de Donald Trump e roupa de prisioneiro em frente ao jornal The New York Times - Carlo Allegri/Reuters
Nas últimas semanas, Trump tem dado em média quatro declarações diárias colocando em dúvida a confiabilidade do voto postal. Esse tipo de voto, no qual o eleitor recebe as cédulas com antecedência e as envia pelo correio, é utilizada desde o século 19 e tem um nível de segurança aceitável.
Na verdade, esse ou qualquer outro tipo de fraude eleitoral é muito infrequente nos Estados Unidos.
Levantamento do Centro Brennan, ligado à Universidade de Nova York, mostrou que fraudes apuradas variam de 0,0003% a 0,0025% dos votos, o que, no universo de uma eleição presidencial, com cerca de 155 milhões de eleitores, equivale a menos de 3,9 mil votos —uma quantidade quase certamente incapaz de afetar o resultado final.
Apesar disso, o fantasma da fraude no voto postal pode gerar um perigoso impasse.
Em tempos normais, não há diferença significativa na opção pelo voto por correio entre eleitores democratas e republicanos, mas durante a pandemia pesquisas têm mostrado que democratas --que consideram a Covid mais grave —pretendem fazer mais uso do voto pelo correio.
A diferença é tão grande que simulações da empresa de dados Axios dão como altamente provável que a apuração com os votos presenciais dê vitória parcial a Trump, mas, após a contagem dos votos pelo correio, Biden saia eleito.
A incerteza é como Trump vai agir no intervalo entre a publicação do resultado parcial e do resultado final.
Reportagem da revista The Atlantic mostra que líderes do partido Republicano estudam, em alguns cenários, declarar suspeição das eleições, de modo que deputados estaduais determinem qual vai ser o voto de todo o Estado —uma possibilidade prevista na Constituição, mas jamais colocada em prática, e que pode jogar o país numa crise sem precedentes.
Pablo Ortellado
Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.
Está marcada para esta segunda-feira (28), às 10h, uma reunião do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) que deve revogar em uma só canetada três resoluções do órgão colegiado sobre áreas de preservação e licenciamento para irrigação. A reunião também deve aprovar a queima de resíduos de agrotóxicos em fornos de cimento.
O revogaço atende a diversos setores econômicos, como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que aparece nos documentos do Conama como requerente da anulação do licenciamento ambiental para projetos de irrigação.
Também se beneficiam do revogaço o setor imobiliário, com a liberação de áreas de preservação de restinga para construção de hotéis à beira-mar; a carcinicultura, com a queda da proteção para áreas de manguezais e também o setor de resíduos, que ganha facilidades para queima de poluentes em fornos de produção de cimento.
Confira abaixo as resoluções que constam na pauta da reunião, disponível no site do Conama.
Proposta de resolução com revogaço no Conama a ser assinada por Salles (Foto: Reprodução/Conama)
Proteção litorânea: manguezal e restinga
A resolução 303/2002 determina quais são as Áreas de Preservação Permanente (APP) nas faixas litorâneas, protegendo toda a extensão dos manguezais e delimitando como APPs as faixas de restinga “recobertas por vegetação com função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues”.
A revogação da resolução beneficia o setor imobiliário nas praias de restinga e a carcinicultura, principalmente no litoral do Rio Grande do Norte.
Mananciais urbanos
A resolução 302/2002 determina que reservatórios artificiais mantenham uma faixa mínima de 30 metros ao seu redor como Área de Preservação Permanente (APP).
A norma se aplica a represamentos e reservatórios de água – como as represas Billings, Guarapiranga e Cantareira, em São Paulo – e protege seus entornos de ocupações irregulares. A revogação libera essas áreas para habitação e usos econômicos, o que pode colocar em risco a segurança das áreas e também a qualidade das águas.
Licenciamento ambiental para irrigação
A resolução 284/2001 padroniza empreendimentos de irrigação para fins de licenciamento ambiental e dá prioridade para “projetos que incorporem equipamentos e métodos de irrigação mais eficientes, em relação ao menor consumo de água e de energia”.
A agropecuária usa 72% da água consumida no Brasil, segundo dados da FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura. Entre as implicações ambientais da atividade de irrigação, está a competição pelo abastecimento de água e também o risco de contaminação por agrotóxicos.
Para especialistas ouvidos pelo blog, a revogação desvincula os empreendimentos de irrigação do processo trifásico de obtenção da licença ambiental, em um adiantamento da tendência de flexibilização da lei geral de licenciamento ambiental, em negociação na Câmara dos Deputados.
Queima de agrotóxico em fornos de cimento
Além da revogação de três resoluções, a pauta do Conama também prevê a aprovação de uma resolução que licencia a queima de resíduos em fornos de produção de clínquer, principal componente do cimento.
A proposta autoriza a queima de poluentes orgânicos persistentes, como substâncias usadas em pesticidas, inseticidas e fungicidas. Também cabem na classificação produtos industriais.
Altamente tóxicos, persistentes no ambiente e bioacumulativos (ou seja, não são eliminados pelo nosso organismo), eles estão ligados a disfunções hormonais, imunológicas, neurológicas e reprodutivas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, sua queima não-controlada, sob temperatura inadequada ou com combustão incompleta pode gerar subprodutos ainda mais tóxicos.
A resolução anterior do Conama sobre o tema (resolução 264/1999), que deve ser revogada nesta segunda pelo novo texto, expressava já no primeiro artigo que a queima em fornos de clínquer não se aplicaria para agrotóxicos, organoclorados e resíduos de serviços de saúde.
O novo texto deixa de citar o termo agrotóxicos entre as exceções e inclui expressamente a permissão para queima de medicamentos e resíduos da indústria farmacêutica.
Na prática, o texto também libera a queima de substâncias tóxicas sem qualquer limite de concentração.
Isso porque ele admite a autorização de concentrações de poluentes superiores às estabelecidas no anexo da resolução “desde que haja ganho ambiental”.
No entanto, entre os possíveis ganhos ambientais aceitos pela resolução, está “a eliminação ou a redução da necessidade de disposição final de resíduos”. Como toda queima reduz a quantidade final de resíduos, a nova resolução implica que qualquer incineração será entendida como ganho ambiental, a despeito dos riscos impostos pela emissão de poluentes.
Além da facilitação do descarte de agrotóxicos, em benefício do setor agrícola, a resolução também amplia a atuação do setor de resíduos, que tem mantido diálogo estreito com o MMA na elaboração do novo Plano Nacional de Resíduos Sólidos, atualmente sob consulta no site da pasta.
O ministro Ricardo Salles teve pelo menos oito encontros neste ano com representantes da Abrelpe, a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública, segundo a agenda disponível no site do MMA.
O blog tentou contato com o ministro do Meio Ambiente, mas não obteve retorno.
Colegiado
O Conama perdeu representação das organizações da sociedade civil – cujos assentos no conselhos passaram de 23 para quatro – e também dos estados – que passaram de 27 para cinco cadeiras, ainda no início do governo Bolsonaro, quando o governo federal e o setor privado passaram a compor a maioria do colegiado.
Segundo o ex-conselheiro do Conama e presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy, as decisões do Conama deveriam pressupor audiências públicas e avaliações técnicas e científicas, que embasariam as decisões.
“Eles estão simplesmente revogando as resoluções, sem sequer avaliar se estão retirando os elementos protetivos”, aponta.
Embora os pareceres jurídicos do MMA apontem a legislação superveniente como motivo para revogação, a Política Nacional do Meio Ambiente prevê que o Conama crie normas e padrões de qualidade ambiental.
“Há vários temas nos quais as resoluções do conselho constituem a principal fonte de regras de aplicação nacional, como o licenciamento ambiental e o controle de poluição por veículos automotores”, afirma Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
Segundo Bocuhy, as decisões do Conama também são mais difíceis de serem questionadas na Justiça, em comparação com decretos e outros atos discricionários do governo.
“Por representar uma decisão colegiada, é muito difícil, em um processo judicial, que o juiz conceda a razão à sociedade civil, porque a defesa será alicerçada no fato de que a sociedade presente anuiu àquele procedimento, porque ele se reveste aparentemente de um caráter democrático, que não é o caso agora”, afirma Bocuhy.