domingo, 6 de setembro de 2020

Vinicius Torres Freire Pobres devem perder o trem de volta para a economia pobre de 2019, FSP

 

Em julho do ano passado, quase 36 milhões de pessoas pagaram bilhetes nos trens da CPTM, empresa que atende a região metropolitana de São Paulo. No mês de julho deste ano de calamidade, os pagantes eram apenas 20,5 milhões, queda de 43%.

No Metrô estatal paulista, a baixa do número de passageiros nos dias úteis era de 60%. Ainda não saíram os dados de agosto, mas dá para ter uma ideia do tamanho da desgraça, que já foi pior, mas continua desgraça.

Muitas pessoas assustadas com o vírus ou com o futuro deixam de gastar na lojinha de rua, no quilo, na lanchonete, no café com bolo da calçada, no pastel, no dogão, no ambulante. Não vai à manicure, ao barbeiro. A economia se recupera, na verdade apenas despiora, dizem os grandes números.

Mas a vida miúda dos pequenos negócios que são o sustento de tanta gente ainda é duríssima. Vai depender do que será dos auxílios e do espalhamento do vírus, como explica qualquer estudioso capaz, economista ou epidemiologista, psicólogo ou sociólogo.

Pelos grandes números, o segundo trimestre teria sido o pior. O PIB caiu 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano. No terceiro, estima-se que haveria crescimento de 6%. Há sinais disso. O consumo de energia elétrica de julho e agosto foi praticamente o mesmo desses meses no ano passado.

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produção das fábricas até cresceu mais do que o esperado em julho (mas a indústria de transformação ainda está mais de 10% abaixo do baixo nível de 2019).

Essa escalada a partir do fundão do poço obviamente é e será desigual. Os dados de faturamento no cartão, da Cielo, mostram que o varejo no fim de agosto ainda vendia 11% menos que em fevereiro. Mas o setor de bens não duráveis vendia cerca de 2,5% mais, e o de duráveis, 4,4% menos. O de serviços, brutais 43% menos.

As vendas de combustíveis em julho ainda eram mais de 8% menores que no ano passado, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo. No final de agosto, os postos de gasolina vendiam 24% menos que em fevereiro, diz a Cielo.

A circulação reduzida massacra a vida real das cidades.

O problema dos serviços e do comércio não para aí, em restaurantes e similares, o tipo de empreendimento mais comum do Brasil, e nas lojas.

Ainda não há perspectiva de retomada ou recuperação notável para entretenimento ao vivo, serviços pessoais como salões de beleza, serviços de saúde e terapias diversas (com cirurgias e tratamentos adiados em hospitais, clínicas, consultórios de dentistas), de educação (tantos cursos cancelados), viagens, hotéis.

Muita empresa está com as finanças arrebentadas, da grande firma de transporte ao restaurante. A redução do auxílio emergencial vai arrebentar os negócios menorzinhos.

Diz-se que a poupança aumentou (isto é, gastou-se menos do que a renda disponível). É verdade, na soma de todos os dinheiros do país, “no agregado”. Esse saldo pode sustentar o nível geral de consumo depois do corte do gasto público. Mas isso vai chegar à manicure ou à vendinha da comunidade?

Os economistas parecem saber um pouco disso, da recuperação desigual e parcial. O pessoal do Bradesco e do Itaú agora prevê igualmente que o PIB afunda 4,5% neste ano e aumenta 3,5% em 2021 —estão entre os otimistas.

Assim, ao final do ano que vem a recuperação do nível de renda e produção seria de apenas 74% do que se perdeu na calamidade de 2020. Ou seja, apenas em 2022 voltaríamos à pobreza de 2019. Um problema é que o povo miúdo não deve nem pegar esse trem de volta para um passado menos ruim.

Vinicius Torres Freire

Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA).

'País pagará por abrir bar antes da escola', OESP

 Priscila Cruz, que se tornou a maior liderança de educação no terceiro setor nos últimos anos, enxerga um futuro triste para um país há quase seis meses com escolas fechadas e sem previsão de abertura em breve. "O Brasil vai pagar um preço muito alto por escolher abrir bar antes de escola", diz a presidente executiva do Todos pela Educação. "Dá para afirmar com certeza, a desigualdade e a evasão vão aumentar, a aprendizagem vai cair. E a consequência no médio e longo prazo para o País é brutal."

Mestre em Administração Pública por Harvard, Priscila gostaria de ver governadores e prefeitos obcecados por educação. "Queria que eles estivessem perdendo o sono porque as escolas estão fechadas." Em vez disso, temendo um mau resultado nas eleições de novembro, muitos têm se guiado por pesquisas em que a maioria da população se diz contrária à retomada. "A decisão de deixar a abertura para o ano que vem é a pior que pode existir. O prefeito pensa: é muito complexo, tem muita opinião. E empurra o problema com a barriga."

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Priscila Cruz
Priscila Cruz, presidente executiva do Todos Pela Educação, afirma que é 'preguiçosa e reducionista' decisão de só voltar às aulas no ano que vem Foto: Daniel Teixeira/Estadão

O debate sobre a volta às aulas está polarizado e contaminado?

É um debate complexo, tem vários componentes, e todos têm uma carga de verdade muito grande. Pais e professores estão inseguros. A educação e a aprendizagem estão sendo brutalmente afetadas, um problema enorme para cada estudante, que define as oportunidades que ele vai ter na vida, e um passivo para o País. Um terceiro componente é que as escolas não deveriam reabrir enquanto a pandemia não estiver controlada. E o quarto é que as aulas remotas são muito limitadoras e com resultados insuficientes. Qual é a dificuldade do debate público? Em geral, as pessoas pegam uma só dessas afirmações, uma bandeira. Qualquer posição que não inclua a complexidade do sistema vai ser parcial e reducionista.

Qual é a solução então?

O gestor público que visa ao bem coletivo olha para todos os argumentos, vê a verdade deles. Mas é função de uma liderança pública tomar a decisão e deixar claros os critérios. Não dá para virar uma bandeira, como "só volta depois da vacina". O resultado que se quer está claro: reduzir o impacto na educação e não fazer que a abertura tenha grande impacto na pandemia porque estamos falando em aumento de mortes. O que deveria ter sido feito se o Brasil priorizasse a educação - e isso não quer dizer não se preocupar com as vidas - era abrir as escolas antes do comércio, como outros países. Às custas da educação, Estados e municípios reabriram o comércio. Poderíamos, às custas do comércio, ter reaberto as escolas. 

As crianças eram tidas como grandes transmissoras da covid.

Elas circulam nos shoppings também. Os espaços públicos estão lotados de crianças agora. Há pais que estão na praça, mas não querem volta às aulas.

Mas agora dá para abrir escolas?

Já que o comércio foi reaberto, não temos mais essa carta na manga, a gente precisa ter um indicador claro do momento em que a escola pode abrir. O que significa ter a pandemia sob controle? Em São Paulo, é uma cesta de indicadores que gera as cores. É um sistema razoável, resolve para o gestor, mas não para a população. Porque há a insegurança com relação ao gestor. A gente tem uma cacofonia, presidente fala uma coisa, governadores outra, especialistas, outra, tem fake news. As cores não tranquilizam a população, ninguém sabe o que tem na caixa preta do amarelo, laranja. Se não tranquilizar, os pais não vão mandar os filhos, os professores não vão dar aula, e a abertura não vai funcionar. Tem de ter um indicador que todo mundo entenda, pode ser número de casos, média móvel, que indique o momento em que se ache razoável abrir. A comunicação é um fator determinante quando há tantos componentes no debate. 

Alguns prefeitos estão colocando 2021 como esse indicador.

Isso não é indicador, é decisão reducionista, preguiçosa, não considera a complexidade. Ele diz: independentemente de tudo, só volta ano que vem. Se estiver controlada em outubro, a decisão será mantida? E se a pandemia não estiver controlada em 2021, as aulas voltam? A decisão de deixar para 2021 é a pior que pode existir. O prefeito pensa: é complexo, tem muita opinião, e empurra o problema com a barriga. É ano eleitoral, tira o problema da frente. Decisões tomadas em 2020 vão moldar o País por décadas. Lideranças precisam entender que decisões difíceis e impopulares têm de ser tomadas.

Isso tudo demonstra desvalorização da educação no País?

A população brasileira valoriza a educação da boca para fora. Quando uma população pressiona para abertura de bares e shopping, aí a verdadeira prioridade é revelada. O prejuízo para a educação desses seis meses vai ser muito profundo. Os livros de história vão mostrar. O Brasil vai se arrepender de ter optado por uma reabertura fora de ordem. Se o País tomar mais decisões equivocadas, a gente pode não recuperar nunca. A gente pode acelerar para um fracasso retumbante e não vai se recuperar dos efeitos da economia, vai aprofundar as desigualdades. Eu gostaria de ter governadores e prefeitos obcecados pela educação, perdendo o sono porque as escolas estão fechadas. E quem vai pagar é a geração covid nas escolas hoje. O Brasil vai pagar um preço muito alto por escolher abrir bar antes de escola.

Já é possível ver os prejuízos?

A desigualdade brasileira está se ampliando pelas condições em que a educação está sendo ofertada. Cerca de 30% não tiveram acesso nenhum a estudo remoto e outros 70% estão em situação muito variada, tem os que acessaram uma vez, viram na TV, aqueles com aula todos os dias. A criança está fazendo aula na mesa da cozinha, com irmão brincando de carrinho, em casas muito pequenas, isso sem falar das situações que me tiram o sono, estresse tóxico, violência doméstica, abusos. Dá para afirmar com certeza, a desigualdade e a evasão vão aumentar, a aprendizagem vai cair. A consequência no médio e longo prazo ao País é brutal. Ao reduzir a evasão, reduz a taxa de homicídio e há relação entre aprendizagem e salário futuro, crescimento econômico, condição sanitária. Se puder voltar as aulas um dia, esse dia vale a pena.

Muita gente acha que não vale.

O vínculo com escola, com os professores, é premissa para a aprendizagem. O ensino remoto é menos eficiente porque a formação de vínculo é mais frágil. O fato de a criança ir para a escola um dia mantém o vinculo já construído ou ajuda a refazer o que foi enfraquecido.

Se abrir em outubro, você mandará suas filhas para a escola?

Sim.

sábado, 5 de setembro de 2020

Fernando Haddad Onde o teto cai, FSP

 “[Com o teto de gastos], o Estado vai sofrer pressão para racionalizar gastos; isso não é positivo e necessário?” Essa pergunta me foi feita em 2016 por esta Folha, à qual respondi: “É como imaginar que o interesse difuso vai prevalecer sobre o interesse corporativo; olha a dificuldade de se cortar supersalários no Judiciário brasileiro, que é o mais caro do mundo; olha a dificuldade que é você enfrentar as corporações”.

Essa previsão se confirmou já na reforma da Previdência em relação aos membros das Forças Armadas. Mesmo sendo a corporação que mais custa para a Previdência, proporcionalmente, a reforma de Bolsonaro lhe garantiu salário integral sem idade mínima. Agora, o Ministério da Defesa obteve aval da AGU para aplicar entendimento diferente para a regra do teto salarial no caso de integrantes das Forças Armadas com cargo no governo. Na prática, isso significa dizer que a categoria que manteve a prerrogativa de se aposentar precocemente ganha o bônus de poder acumular dois rendimentos que isoladamente não podem extrapolar o teto, ou seja, uma espécie de pé-direito duplo.

O Conselho Nacional de Justiça, por seu lado, não se fez de rogado. O órgão determinou que, durante a pandemia, os tribunais regionais comprassem um terço das férias dos juízes federais. Como se sabe, os magistrados têm 60 dias de descanso por ano e poderão vender à União 20 dias e gozar 40 dias de férias. Não custa lembrar que 65% dos juízes ganham acima do teto salarial em função dos chamados penduricalhos ou auxílios permanentes.

Embora se possa dizer que a reforma administrativa de Bolsonaro não terá impacto significativo nos próximos dez ou 20 anos —um dia eu conto por que para o “mercado” tanto faz—, ainda assim ele preferiu excluir da proposta servidores de outros Poderes e militares —o que para o “mercado” tanto faz.
Como anda a turma que mora no andar de baixo?

Associações de supermercados alertam o governo para alta de 20% na cesta básica. A cobrança vem na mesma semana em que Bolsonaro reduz proposta de salário mínimo para R$ 1.067, zerando previsão de qualquer aumento real para 2021. A forte desvalorização cambial de quase 40% em 12 meses —que só não foi maior graças às reservas acumuladas— impactou fortemente o preço dos alimentos por pressão das exportações.

Como se não bastasse, o governo anuncia o corte do auxílio emergencial pela metade, antes da volta da economia às mínimas condições de normalidade, em vez de mantê-lo, como prega a oposição progressista.

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Como previsto, o teto sempre cai na cabeça do mais fraco.

Fernando Haddad

Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.