O Brasil tem a tradição de alimentar o debate público com falsas dicotomias. A última delas, agravada pela pandemia, coloca em lados opostos o ajuste fiscal e os programas sociais. Alguns chegam a defender o fim do teto em nome da ampliação dos gastos públicos; afinal, os programas fariam um “colchão de segurança” para os mais pobres e as obras públicas resultariam em uma saída acelerada da crise. Três coisas me fazem questionar o argumento.
Primeiro: por maior e mais eficiente que seja o gasto público, este nunca será suficiente para alavancar a economia com a mesma força do setor privado; segundo: sem uma âncora fiscal rígida, o capital privado desaparecerá do país —sem contar que a dívida ficaria mais cara, pressionando ainda mais o caixa do Tesouro; e terceiro e mais importante: não precisamos perder o equilíbrio fiscal para criar uma renda mínima no Brasil e retomar a agenda econômica.
À exceção da pandemia, o gasto público federal soma aproximadamente R$ 1,5 trilhão por ano. De investimento público, no entanto —aquele que de fato se transforma em escolas, estradas e unidades de saúde—, são previstos pouco mais de R$ 19 bilhões em 2020. O maior nível de investimento público da história chegou a R$ 67 bilhões, feito justamente no governo Dilma. Se retomássemos esse patamar, os poucos efeitos positivos estariam longe de provocar grandes transformações.
Ao contrário. Se flexibilizarmos o teto para aumentar investimentos, as consequências serão dramáticas. O país perderá a confiança dos investidores, do mercado externo e será rebaixado pelas agências de risco. Sem um sinal de que pode honrar com seus compromissos no futuro, o Brasil encontrará juros cada vez mais caros. A taxa Selic pode reverter sua trajetória de queda, encarecendo inclusive os investimentos privados. No fim das contas, nos veremos incapazes de investir, não importa a fonte dos recursos.
Qual seria então o melhor caminho para manter a situação fiscal equilibrada, retomar o crescimento econômico e reduzir as desigualdades que aumentaram durante a pandemia? A resposta não é simples, mas perfeitamente possível: controlar despesas obrigatórias, revisar gastos ineficientes e aprovar medidas que destravem o investimento privado no país. Em resumo, precisamos de boa gestão pública. Com a participação de todos os Poderes.
Apesar de termos aumentado o volume dos gastos públicos nos últimos anos, não houve melhoria na prestação de serviços ao cidadão brasileiro. O problema, portanto, está na ineficácia, não no montante destinado ao serviço público. A boa gestão, por conceito, faz mais com menos, atuando nas duas frentes: uso inteligente dos recursos para entregar resultados melhores aos brasileiros. É preciso atacar, no médio prazo, a burocracia e a incompetência.
Para ampliar os recursos disponíveis de imediato, podemos ativar os “gatilhos” do teto, com duras medidas, abrindo um espaço fiscal de R$ 30 bilhões por ano. Some a este valor uma revisão dos atuais programas assistenciais, como Bolsa Família, abono salarial, salário-família e o seguro-defeso, e chegaremos a R$ 80 bilhões para a criação da renda básica. Não é o tamanho ideal, mas representaria um enorme passo na direção de um país menos desigual.
Não podemos esquecer que o Brasil é cheio de gastos tributários ineficientes, como os incentivos fiscais concedidos indiscriminadamente a setores industriais e as deduções do Imposto de Renda. Poucas coisas, porém, terão tanto efeito na vida dos brasileiros quanto a reforma administrativa. Corrigindo distorções, redesenhando carreiras e digitalizando o governo, conseguiremos não apenas um efeito fiscal no futuro, mas um ganho de eficiência enorme nos serviços públicos e na economia.
Por fim, nossa retomada depende também da ampliação da produtividade. A reforma tributária em discussão na Câmara tem a capacidade de aumentar, sozinha, o PIB brasileiro em 20% nos próximos 15 anos. Aprovamos o novo marco legal do saneamento e a nova lei do gás, mas ainda aguardam na fila medidas como a lei das ferrovias, o novo marco do setor elétrico, a lei de debenturies incentivadas para infraestrutura e tantas outras com capacidade enorme de gerar empregos sem aumentar um centavo sequer de gasto público.
O grande dilema, ao que parece, é a adoção de um discurso político fácil. Soa até mais bondoso aquele que defende o fim do lastro fiscal para aumentar gastos de forma irresponsável. Promover mudanças e reformas leva tempo, enfrentar privilégios pode representar uma verdadeira guerra política, mas temos uma vantagem histórica única. O Brasil chegou ao fundo do poço e tem a oportunidade de corrigir, de uma só vez, desigualdades sociais e ineficiências econômicas. É preciso esforço, coordenação e coragem para caminhar com uma agenda consistente de reformas, mas estamos prontos para fazê-lo.