sexta-feira, 12 de junho de 2020

Derrubando estátuas, regredimos às guerras religiosas do século 16, João Pereira Coutinho, FSP

Eis a revolução de Locke, que criou o mundo moderno: paz social não depende do estabelecimento de um único dogma

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Tempos sombrios para a liberdade de expressão. No New York Times, jornal que assino (até quando, veremos), o editor de opinião foi demitido por ter publicado um artigo do senador republicano Tom Cotton.

No texto, Cotton repetia o argumentário primitivo de Donald Trump e pedia uma intervenção militar (e musculada) contra as manifestações antirracistas.

Ao mesmo tempo que isso acontecia, plataformas de streaming retiravam dos seus catálogos alguns filmes e séries. A HBO retirou “E o Vento Levou” por suas tonalidades escravocratas. A BBC fez o mesmo com “Little Britain”, série de humor onde o “blackface” era usado para fins cómicos.

E depois ainda temos o ódio contra estátuas que, direta ou indiretamente, evocam o racismo do passado. Em Bristol, a estátua de Edward Colston, um negociante de escravos do século 17, foi jogada nas águas do rio Avon por uma multidão enfurecida.

Estátua de Colston é jogada no rio Avon, Bristol, no Reino Unido - Giulia Spadafora/NurPhoto/AFP



Mas já existe uma longa lista com todas as estátuas “problemáticas” do país, que merecem igual destino. Entre os candidatos ao cadafalso estão nomes como Robert Peel, William Gladstone ou Cecil Rhodes. Comentários?

Haveria muitos. Mas, hoje, prefiro contar uma história. Essa história começa na Europa do século 16, quando católicos e protestantes se matavam em nome da verdadeira fé.

Aliás, não apenas católicos e protestantes: entre as seitas reformistas, a violência era igual ou pior.

Segundo o raciocínio da época, a paz social só seria possível pela imposição de um único dogma. O que implicava, logicamente, destruir qualquer expressão de dissidência.


Mas eis que em 1667 um cavalheiro inglês chamado John Locke (1632 – 1704) decidiu escrever a sua “Carta sobre a Tolerância”. O autor tinha viajado pela Europa continental. E, confrontado com as guerras religiosas e a montanha de cadáveres que elas produziram, Locke chegou à conclusão razoável de que talvez fosse preferível não matar o parceiro só porque ele professa uma crença distinta.

Eis a revolução de Locke, que praticamente criou o mundo moderno: a paz social não depende do estabelecimento de um único dogma. É exatamente o contrário: só abandonando essa pretensão era possível chegar à paz social.

Sim, eu sei: a tolerância de Locke tinha limites. Nem ateus (por razões morais), nem católicos (pela submissão a um poder exterior, Roma) beneficiavam dessa bonomia.

Mas o essencial é que Locke inaugurava um conceito de tolerância que permitiu o florescimento das sociedades políticas liberais. E, com elas, o progresso material e intelectual dos últimos três séculos.

O que estamos a presenciar, agora, é a lenta destruição da tolerância liberal.

O jornalista Douglas Murray, que dedica ao tema um artigo na revista The Spectator, afirma que essa destruição se explica pela emergência de uma nova geração de “liberais” que, ao contrário da anterior (a minha, digamos), não valoriza da mesma forma a liberdade de expressão, a humildade do conhecimento, a possibilidade do perdão e, claro, o valor da tolerância.

Concordo com ele. Mas é possível ir mais longe e afirmar que estamos a regredir no tempo e a retornar às guerras religiosas do passado. Para os novos fanáticos, a paz social não depende da tolerância perante ideias contrárias e até ofensivas para a nossa pureza mental.

Depende da destruição do herege e da entronização da Verdade (com maiúscula).

Parabéns a todos. Prevejo um futuro radioso.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

PEDRO DORIA Zoom: teste para o Vale do Silício, OESP

É hora de começar a prestar atenção no Zoom. Não no aplicativo, mas na empresa. Nos últimos poucos meses, o fundador da companhia, Eric Yuan, se tornou um dos homens mais ricos do mundo, múltiplas vezes bilionário. O aplicativo era um que ninguém realmente conhecia. Agora, tornou-se substantivo comum de uso corrente — vamos fazer um Zoom? Pode parecer uma história de sucesso, mas ainda é cedo. E este será um teste importantíssimo para o Vale do Silício.

11/06/2020 | 20h33

Daniel Martins de Barros Quase acostumados, OESP

Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo

11 de junho de 2020 | 03h00

Dizem que, para domar elefantes antigamente, deixavam filhotes com uma pata amarrada desde o nascimento. Eles iam crescendo e aprendendo que era inútil tentar ir além da tensão na corrente – depois que ela esticava, não adiantava tentar forçar adiante. Esticou, freou. E com isso eles se tornavam atrações de circo fáceis de manejar – aqueles bichos enormes eram facilmente mantidos presos num pequeno toco, por nem sequer imaginar que poderiam arrastar domador, corrente, tudo, se apenas tentassem. Mas eles não tentavam.

Não sei o quanto de verdade tem nessa história, mas é fato que podemos ensinar alguém a desistir. Chama desamparo aprendido, e foi descoberto numa experiência bastante cruel. Nos anos 1960, quando os comitês de ética eram provavelmente mais lenientes, o psicólogo Martin Seligman colocou cães em gaiolas especiais com chão eletrificado, dando choques nos coitados dos bichos de vez em quando. Embora não soubessem quando vinha o susto, numa delas podiam interromper os choques com uma alavanca, ao contrário do que acontecia na outra. Depois de um tempo os cães iam para outra gaiola dividida em duas metades por uma barreira baixa, na qual só um dos lados tinha o chão eletrificado. Quando os cães eram colocados ali, apenas os que vinham da gaiola com alavanca pensavam em pular para o lado que não dava choque. Os outros ficavam lá, tomando choque, sem ter a mesma ideia. Afinal, eles haviam aprendido a não ter esperança. Daí desamparo aprendido.

Tenho pensado nessas histórias conforme vejo muita gente dizendo que já se acostumou com a vida na quarentena. Será que estamos no caminho dos cães de Seligman? Ou do cachorro de Zenão?

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Há três meses, quando a coluna estreou no caderno Quarentena, eu dizia que era preciso aceitar a realidade dos fatos. Antes de o termo novo normal ganhar fama referindo-se ao cenário que nos aguarda quando tudo isso passar, defendi sua aplicação não no futuro, mas no presente. A realidade que estamos vivendo agora é o normal por enquanto. Nos rebelarmos contra ela não a torna mais breve, apenas menos tolerável. E lembrava então do filósofo Zenão, que descrevia o comportamento de um cão sábio. Amarrado a uma carroça, ele sabiamente não se revoltava contra a direção para onde era puxado, mas aceitava o destino e fazia sua vontade coincidir com as forças que o arrastavam.

Qual a diferença entre os dois cães? Por que nos sentimos compungidos pela história dos cães de Seligman e inspirados pelo cachorro de Zenão?

Creio que seja devido ao motivo por trás da resignação. O cachorro amarrado seria tolo de lutar contra seu destino. Como só lhe resta aceitá-lo, parece digno fazê-lo com altivez. Já o cachorro que desiste de pular por desamparo lá fica, tomando choques desnecessariamente, inspirando piedade.

Agora que estamos quase nos acostumando com a quarentena me pergunto por quê. Se estivermos lidando de forma estoica com uma realidade dura, ótimo. Mas devemos nos manter vigilantes para que não desistamos de lutar com problemas que podemos superar. Eles não são destinos inexoráveis. Mas só saberemos disso quando tentarmos nos livrar deles.