Eis a revolução de Locke, que criou o mundo moderno: paz social não depende do estabelecimento de um único dogma
Tempos sombrios para a liberdade de expressão. No New York Times, jornal que assino (até quando, veremos), o editor de opinião foi demitido por ter publicado um artigo do senador republicano Tom Cotton.
No texto, Cotton repetia o argumentário primitivo de Donald Trump e pedia uma intervenção militar (e musculada) contra as manifestações antirracistas.
Ao mesmo tempo que isso acontecia, plataformas de streaming retiravam dos seus catálogos alguns filmes e séries. A HBO retirou “E o Vento Levou” por suas tonalidades escravocratas. A BBC fez o mesmo com “Little Britain”, série de humor onde o “blackface” era usado para fins cómicos.
E depois ainda temos o ódio contra estátuas que, direta ou indiretamente, evocam o racismo do passado. Em Bristol, a estátua de Edward Colston, um negociante de escravos do século 17, foi jogada nas águas do rio Avon por uma multidão enfurecida.
Mas já existe uma longa lista com todas as estátuas “problemáticas” do país, que merecem igual destino. Entre os candidatos ao cadafalso estão nomes como Robert Peel, William Gladstone ou Cecil Rhodes. Comentários?
Haveria muitos. Mas, hoje, prefiro contar uma história. Essa história começa na Europa do século 16, quando católicos e protestantes se matavam em nome da verdadeira fé.
Aliás, não apenas católicos e protestantes: entre as seitas reformistas, a violência era igual ou pior.
Segundo o raciocínio da época, a paz social só seria possível pela imposição de um único dogma. O que implicava, logicamente, destruir qualquer expressão de dissidência.
Mas eis que em 1667 um cavalheiro inglês chamado John Locke (1632 – 1704) decidiu escrever a sua “Carta sobre a Tolerância”. O autor tinha viajado pela Europa continental. E, confrontado com as guerras religiosas e a montanha de cadáveres que elas produziram, Locke chegou à conclusão razoável de que talvez fosse preferível não matar o parceiro só porque ele professa uma crença distinta.
Eis a revolução de Locke, que praticamente criou o mundo moderno: a paz social não depende do estabelecimento de um único dogma. É exatamente o contrário: só abandonando essa pretensão era possível chegar à paz social.
Sim, eu sei: a tolerância de Locke tinha limites. Nem ateus (por razões morais), nem católicos (pela submissão a um poder exterior, Roma) beneficiavam dessa bonomia.
Mas o essencial é que Locke inaugurava um conceito de tolerância que permitiu o florescimento das sociedades políticas liberais. E, com elas, o progresso material e intelectual dos últimos três séculos.
O que estamos a presenciar, agora, é a lenta destruição da tolerância liberal.
O jornalista Douglas Murray, que dedica ao tema um artigo na revista The Spectator, afirma que essa destruição se explica pela emergência de uma nova geração de “liberais” que, ao contrário da anterior (a minha, digamos), não valoriza da mesma forma a liberdade de expressão, a humildade do conhecimento, a possibilidade do perdão e, claro, o valor da tolerância.
Concordo com ele. Mas é possível ir mais longe e afirmar que estamos a regredir no tempo e a retornar às guerras religiosas do passado. Para os novos fanáticos, a paz social não depende da tolerância perante ideias contrárias e até ofensivas para a nossa pureza mental.
Depende da destruição do herege e da entronização da Verdade (com maiúscula).
Parabéns a todos. Prevejo um futuro radioso.
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