quarta-feira, 17 de abril de 2019

Máquina de corromper também mata, Clovis Rossi, FSP

Suicídio de Alan Garcia vai na conta da Odebrecht

Alan Garcia, de terno, veste faixa presidencial nas cores da bandeira do Peru e canta hino de cabeça erguida; ao fundo, bandeira do Peru
Alan Garcia canta o hino nacional durante cerimônia de sua posse no Congresso peruano, em 2006 - Jaime Razuri - 28.jul.2006/AFP
    Assim como há os “serial killers” (assassinos em série), há os corruptores em série.
    O mais notório deles —a construtora brasileira Odebrecht— acaba de fazer a sua primeira vítima de grande repercussão, na figura do ex-presidente peruano Alan García (houve já cinco mortes ligadas ao caso Odebrecht, três na Colômbia, uma na Bahia e outra no Rio Grande do Sul).
    O Peru, aliás, é a mais completa demonstração de que a Odebrecht é uma máquina de corrupção: todos os presidentes deste século foram envenenados pela Odebrecht.
    Um deles, Ollanta Humala, chegou a ficar preso por nove meses. Nesta quarta-feira (17) soltou nota de pesar pela morte de García, provavelmente aliviado porque, no dia 30, comemorará um ano de liberdade.
    Outro presidente, Pedro Pablo Kuczynski, mais conhecido como PPK, corre o risco de se tornar a segunda vítima: no mesmo dia em que García se suicidou, o promotor José Domingo Pérez solicitou 6 anos e 8 meses de prisão para ele. Notícia terrível para quem está internado por causa de taquicardia e pressão alta.
    Um terceiro ex-mandatário, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados Unidos. Sua extradição já foi solicitada.
    Fosse no Japão, o suicídio de Alan García poderia ser considerado um daqueles gestos de fuga à vergonha pela prisão praticado por algum acusado de corrupção.
    No caso dele, não é bem isso: se estivesse com vergonha, García não teria pedido asilo ao Uruguai assim que começaram as investigações sobre “Chalán”, o codinome que a empresa brasileira atribuiu a ele (sim, também no Peru, cada corrompido recebia um nome em código).
    Se a moda de preferir o suicídio à prisão tivesse sido adotada antes, haveria uma verdadeira carnificina entre políticos latino-americanos: documentos enviados pela Suíça e pelos Estados Unidos, publicados há cerca de dois anos pela Folha, mostram que o veneno da construtora se espalhou por dez países da região (Brasil, Argentina, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala, Panamá, Peru, Venezuela e México). Pegou também Moçambique.
    O principal executivo à época dessa corruptora em série, Marcelo Odebrecht, confessou a um grupo de procuradores peruanos e brasileiros que o interrogou em novembro passado: “Nós apoiamostodos os candidatos presidenciais do Peru, todos os partidos e provavelmente várias eleições de congressistas".
    Completou com uma frase definitiva sobre as práticas escusas da companhia: "Assim funciona a América Latina inteira".
    Tem razão. Tanto que um balanço feito até outubro passado pelos procuradores da Lava Jato apontava mais de 200 condenações por crimes que incluíam corrupção, abuso do sistema financeiro internacional, tráfico de drogas e lavagem de dinheiro.
    A maioria dos condenados são políticos e executivos, tanto da Odebrecht (ou de outras construtoras) como da Petrobras.
    A corrupção fez correr o sangue não só de Alan García, mas também da economia brasileira: levantamento do Council on Foreign Relations mostra que, pelo menos em parte, a crise política desatada pelas investigações ajudou a jogar o Brasil no buraco da pior recessão em um século.
    Será que o suicídio do político peruano fará mudar o jeito como “funciona a América Latina inteira". Meu palpite? Não, não fará.
    Clóvis Rossi
    Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

    Incêndio em Notre-Dame cala a história em forma de pedras, OESP

    Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo
    17 de abril de 2019 | 05h00

    Era um silêncio infinito. Desde que as TVs anunciaram que a catedral de Notre-Damede Paris estava em chamas, mulheres, homens, crianças, convergiram para a Île de la Cité para acompanhar o drama. Em silêncio. Havia parisienses, franceses, chineses, americanos, russos, todos de olhar incrédulo. Era como um sonho paralisado. Um dos mais poderosos monumentos da Europa virara uma tocha. 
    Chamas e fumaça engolfam pináculo da catedral de Notre Dame, em Paris
    Chamas e fumaça engolfam pináculo da catedral de Notre Dame, em Paris  Foto: Philippe Wojazer/Pool via AP
    No entanto, quando a flecha de 90 metros dobrou-se em chamas, as palavras voltaram. A multidão murmurava, como se bruscamente se desse conta de que se tratava de um pesadelo real, um acontecimento irrefutável que passaria a fazer parte do ser de cada uma das testemunhas, do se ser de todo um povo. 
    Ouviam-se choros e preces. Pessoas que nunca se haviam visto se abraçavam. As informações eram trocadas. Soube-se que todos ou quase todos os chefes de Estado expressaram sua emoção, sua dor. Donald Trump, presidente dos EUA, foi dos primeiros. Ele não se contentou em manifestar solidariedade, mas juntou em sua mensagem um conselho lapidar, definitivo: “Não vejo um número suficiente de bombeiros. Por que vocês não mandaram alguns aviões carregados de água? O combate terminaria em minutos.
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    Vídeo mostra queda da torre
    Os responsáveis responderam: “Poucos bombeiros? São 400! Quanto a bombardear a catedral com água, teria sido o melhor meio de explodir as milhões de toneladas de material que compõem esse edifício imenso e fazer do mais belo monumento da Europa um monte de cinzas”. Caro sr. Trump, é bom rever seu manual de socorro a igrejas em chamas.
    À noite, a catedral de Paris lembrava um bloco de ouro fundido, com seus quadros, chiaroscuros de Rembrandt e delírios surrealistas suficientes para fazer um filme de terror, ou ainda, depois que uma parede desmoronou e só sobraram as vigas de aço dos andaimes, um cenário delirante de Piranese. 
    A multidão era formada principalmente por franceses, mas havia um grande número de estrangeiros, de origem variada: italianos, judeus, alemães, ingleses, brasileiros, e ainda chineses, indianos e representantes de todas as religiões: budistas, muçulmanos, católicos, ortodoxos, animistas e ateus.
    Por uma noite, unido pela tristeza, o mundo se tornou a aldeia universal com a qual alguns utopistas sonham em vão desde o início dos tempos. Houve umas poucas notas desafinadas. O hebdomadário satírico Charlie Hebdo, famoso por seus desenhos idiotas, achou engraçado sair com um título debochado. Foi decepcionante. Os ignorantes não entenderam que se desenrolava ante seus olhos um imenso momento da história da França e da Europa. 
    Em um espaço de três horas, vimos desabar para o nada esse edifício cujas primeiras fundações tinham mil anos e às quais se somaram elementos posteriores, como a alta flecha (o pináculo) acrescentada pelo o grande arquiteto Viollet-le-Duc, no século 19.
    Paira sobre a catedral um grande mistério: plantada no coração de Paris, na França, mas também no coração de um continente guerreiro, furioso, belicoso, marcado por revoluções e motins, é espantoso que nenhum general ou caudilho jamais a tenha ameaçado. 
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    Incêndio atinge a Catedral de Notre Dame, em Paris

    O próprio Hitler não ousou fazer isso. E eis que neste 15 de abril de 2019, a poucos dias da Semana Santa, a imprudência, talvez de um operário, chacina a maravilha e a reduz a escombros. Sem dúvida, reconstruiremos a Notre-Dame, em 10, 20, 30 anos, mas jamais poderemos dizer acariciando uma pedra: “Um gesto como este um homem ou uma mulher já fez mil anos atrás”.
    Mil anos de história estão escritos nessas paredes. No coração da capital, e mesmo no” ponto zero” do território francês, Notre-Dame de Paris é um resumo patético da história da França. Ela testemunhou, no século 16, o casamento do rei Henrique IV, que tentou reconciliar católicos e protestantes. 
    Poucos dias depois, no massacre de São Bartolomeu, o Rio Sena, que corre aos pés da Notre-Dame, tingiu-se com o sangue de católicos e reformistas. Mais tarde, na Revolução Francesa, de 1789, o furor antirreligioso fez da catedral um depósito deixado ao abandono.
    Napoleão Bonaparte se fez coroar imperador na Notre-Dame de Paris. Os reis voltaram, mas, em 1870, após a vitória da Alemanha contra a França, os comunas rebelados se apoderaram de novo da Notre-Dame. No século 19, o grande Vitor Hugo escreveu um romance, O Corcunda de Notre-Dame, que seria seguidamente adaptado para o cinema americano. 
    Em 1944, quando a França foi libertada dos alemães, o general Charles de Gaulle chegou a Paris. Ele pediu um Te Deum na catedral, enquanto os últimos colaboracionistas franceses dos nazistas, entrincheirados em prédios próximos, atiravam contra ele. Foi um pânico na nave principal. Ministros, conselheiros, agregados, padres, todos se achataram sob os bancos como linguados. De Gaulle, sozinho, imenso, prosseguiu lentamente, no mesmo passo, até o altar.
    Na Idade Média, o estilo gótico, atulhado de estátuas, gárgulas, arcos e cenas do Antigo Testamento ou dos grandes momentos da história dos reis, era utilizado pelos padres para ensinar a Bíblia aos fiéis que não sabiam ler. A catedral de Notre-Dame era uma Bíblia de pedra. Agora, destruídas pelo fogo, essa Bíblia, essa história em pedra, emudeceram. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ