sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Por que defender a democracia, Steven Levitsky, FSP

Os brasileiros em breve enfrentarão um segundo turno no qual um dos dois candidatos será autoritário. Se eleito presidente, Jair Bolsonaro (PSL) representaria uma clara ameaça à democracia.

A popularidade de Bolsonaro não deveria nos surpreender. O Brasil sofreu uma tempestade perfeita: recessão profunda combinada ao maior escândalo de corrupção de qualquer democracia na história. Isso gerou profundo descontentamento com o status quo político —e com a elite política.

De acordo com pesquisas recentes, apenas 20% dos brasileiros estão satisfeitos com sua democracia. E muitos brasileiros afirmam, em pesquisas, que em certas circunstâncias apoiariam um golpe de Estado.
Esses são números perturbadores. A democracia do Brasil está vulnerável —vive seu momento mais vulnerável em uma geração. Os brasileiros precisam agir para defendê-la.

Por que os brasileiros deveriam defender a democracia? Permita-me oferecer algumas razões.
Primeiro, não existem provas de que o autoritarismo ofereceria soluções melhores para os problemas do Brasil. Há muitas pesquisas que buscam determinar se ditaduras funcionam melhor do que democracias, economicamente. 

E os resultados são claros: não funcionam. Algumas poucas ditaduras se saíram excepcionalmente bem (Cingapura, Taiwan, China). Mas elas são exceções. Para cada Cingapura ou China, existem dezenas de ditaduras em todo o mundo que fracassaram economicamente. 

Em média, as ditaduras não geram crescimento mais alto, inflação mais baixa ou equilíbrio fiscal superior.

Também existem poucas indicações de que uma ditadura resolveria os demais problemas brasileiros. 
Ditaduras não necessariamente se saem melhor na redução do crime, e não fazem um trabalho melhor no combate à corrupção. Na verdade, ditaduras são mais propensas à corrupção do que as democracias.

Assim, indicações vindas do mundo inteiro sugerem que haja pouco a ganhar com o autoritarismo.
Mas há muito a perder. É preciso tempo para construir instituições democráticas fortes. Estabelecer controle civil sólido sobre as Forças Armadas requer décadas. Estabelecer um Poder Judiciário independente e direitos civis e humanos básicos requer décadas. Os brasileiros realizaram essas coisas nas últimas três décadas. 

Nunca antes na história brasileira o controle civil sobre as Forças Armadas, a independência do Judiciário e os direitos civis e humanos estiveram tão bem estabelecidos quanto no último quarto de século. Essa é uma grande realização.

Uma queda ao autoritarismo —mesmo que breve— eliminaria décadas de esforços de construção de instituições. Esse foi um problema que prejudicou por muito tempo países como Argentina, Bolívia, Equador e Peru. Historicamente, nesses países, a democracia entra em colapso a cada vez que acontece uma crise. Como resultado, as instituições jamais têm tempo para fincar raízes. É um círculo vicioso do qual os argentinos e peruanos continuam tentando escapar até hoje.

Para se consolidarem, as democracias precisam sobreviver a algumas tempestades muito fortes. Nos Estados Unidos, a democracia passou pela guerra civil, pela Grande Depressão da década de 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Se você abandona a democracia sempre que surge uma crise, a democracia jamais se consolida. Esse é o caminho da Argentina.

Por fim, o destino da democracia brasileira tem consequências que vão além do Brasil. Os últimos 30 anos foram o período mais pacífico e democrático da história da América Latina. As Forças Armadas deixaram o palco; guerras civis e insurgências se encerraram.

Mas há nuvens de tempestade no horizonte. China e Rússia estão se tornando mais fortes. A Europa está em crise. E o atual governo dos Estados Unidos não tem interesse na democracia. Ao mesmo tempo, a confiança pública na democracia está em queda na América Latina. Não é só no Brasil: o descontentamento cresceu no México, Argentina, Peru, Colômbia —mesmo no Chile e na Costa Rica.

O Brasil é um país influente. Se a democracia brasileira falhar, isso poderia resultar em uma onda de rupturas democráticas na América Latina.

Não seria a primeira vez. O Golpe de 1964 teve enorme impacto na América Latina, encorajando os militares a tomar o poder na Argentina, Bolívia, no Chile, Equador, Panamá, Peru e Uruguai. Seria trágico se a história se repetisse.
Tradução de Paulo Migliacci
Steven Levitsky
É cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"

Parte da elite brasileira deserta da ciência e adere à magia, Reinaldo Azevedo, FSP

Sensatos caem vítimas da suposição de que a sinceridade grosseira pode ser redentora

A dois dias do primeiro turno das eleições, vai uma constatação vazada não sem certa melancolia. Setores da elite universitária brasileira são hoje os principais clientes das mentiras espalhadas nas redes sociais. É um assombro que assim seja. Aqueles que, em tese, dispõem dos instrumentos mais afinados para apontar o que está fora do tom se mostram os maiores entusiastas de cacofonias muitas vezes sórdidas.

São, entre outros profissionais, médicos, engenheiros, dentistas, economistas, advogados —e, por óbvio, não estou aqui a cometer o erro da generalização. Também há, e espero que em maior número, os que se mostram capazes de ponderar e que ainda não renunciaram à lógica elementar em favor da falácia.

Quando essas pessoas estão a fazer uma incisão num abdômen, a calcular os materiais de uma ponte, a tratar o canal de um dente, a fazer uma planilha de custos, a articular os códigos legais que nos regem, pergunto: usam ou não a razão e o saber acumulado? Apelam a métodos já testados, verificados e verificáveis de precisão, buscando cercar as margens de erros, ou atuam segundo fundamentos místicos, o “ouvi dizer”, o “só pode ser”? Apelam à ciência ou dão três toques na madeira?

Devo começar a duvidar por princípio dos diagnósticos?

Devo começar a temer pelas edificações?

Devo começar a tremer de antemão pelos abcessos da imperícia?

Devo começar a desconfiar da matemática financeira?

Devo começar a recusar o aporte das lentes jurídicas?

A política também é um saber. E pode matar mais do que a imperícia em muitas profissões. De onde vem a crença de que alguém sem nenhuma experiência é capaz de oferecer a resposta certa e definitiva para problemas difíceis? Talvez eu mesmo possa responder em lugar dos que, a esta altura, podem estar indignados demais para fazer outra coisa que não vituperar contra mim —no caso, os que ainda não desertaram: 

“Ah, Reinaldo, vem da constatação de que aqueles que estão aí, até agora, nada fizeram. Se eram todos políticos tradicionais, de grandes partidos, e nos largaram nessa lama, por que eu deveria confiar neles?”
Pois é... Tal resposta seria uma tolice porque, para que o raciocínio fosse aceitável, forçoso seria que se substituíssem os maus obstetras por parteiras; os maus engenheiros por práticos que vão juntando escora e cimento ao Deus-dará; os maus dentistas por curiosos do boticão.

Por que pessoas sensatas em suas respectivas profissões, hábeis do manejo dos fundamentos de suas respectivas ciências, testadas, muitas vezes, em mercados competitivos, caem vítimas da suposição estúpida de que a sinceridade grosseira, justamente porque desinformada, pode ser redentora?

“Ah, não quer que eu vote em Fulano, né? Então quer Beltrano...” Eu??? Posso auxiliar alguém no uso de adjuntos adverbiais de modo, por exemplo, nunca na escolha de um candidato. 

Apenas me dou o direito de indagar que futuro tem um país em que parte considerável daquela que é, para todos os efeitos, a sua elite intelectual não consegue, em matéria de política, ir além dos memes que recebe pelo celular. De resto, aquela indagação desconfiada pressupõe a mentira de que, desde sempre, estivemos entre a cara e a coroa.

Se posso fazer uma advertência, lá vai: um eventual resultado das urnas pautado pelo raciocínio mágico será, depois, cobrado pelo mundo real, que sempre aparece para assombrar as fantasias, como fez com Fernando Collor e Dilma Rousseff, que caíram.

Para não deixar passar. O pior aconteceu e está em curso. O Poder Judiciário entrou na eleição. O veto à entrevista de Lula, com censura prévia, afronta as regras de funcionamento do Supremo e os Artigos 5º e 220 da Constituição. 

A marota quebra de sigilo da delação de Antonio Palocci, determinada por Sérgio Moro na boca da urna, é uma aberração. Nos dois casos, a toga tenta fazer sombra na vontade do eleitor. E que se note: estou entre aqueles que acham que a entrevista de Lula faria mais mal do que bem ao PT. 

Mas isso não determina a minha crítica. Meu candidato é o respeito às regras do jogo. Faz parte do pensamento mágico ignorar as obviedades do Conselheiro Acácio, segundo quem as consequências vêm sempre depois.
Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.