Érica Fraga
SÃO PAULO
As paralisações dos caminhoneiros podem ser o embrião de uma rebelião tributária, que ocorre quando a população deixa de aceitar a legitimidade do governo para cobrar impostos.
O diagnóstico é do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, para quem a má condução da crise pelo governo de Michel Temer levou outros setores organizados da sociedade a perceberem sua vulnerabilidade.
Para ele, um dos riscos criados por essa situação é que a disseminação do movimento dos caminhoneiros force a saída do presidente antes da eleição marcada para outubro.
“Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto.”
Outro temor do economista é que uma radicalização dos ânimos impeça a realização do pleito presidencial em “um clima minimamente civilizado”.
Para evitar isso, na opinião de Giannetti, o governo precisa garantir que o acordo que foi feito com os caminhoneiros seja cumprido e restabelecer a normalidade do funcionamento da economia.
O economista concedeu a entrevista na sexta-feira (25) à noite, após enfrentar o que ele classificou como um “pesadelo logístico” para voltar do Nordeste, onde estava a trabalho, para São Paulo.
Ao ter um voo cancelado de Natal para Maceió, Giannetti precisou alugar um carro, chegou a ficar sem gasolina e se surpreendeu com faixas pedindo intervenção militar nos bloqueios da estrada.
“Eu fiquei chocado”.
Há dois anos, o senhor disse que se perguntava até onde o tecido social brasileiro suportaria as consequências da crise econômica. A confusão atual pode ser o início de ruptura do tecido social?
Não vou declarar que é o início, mas a situação é muito característica de rápida disseminação, porque as pessoas estão com os nervos à flor da pele e a situação é muito instável, qualquer faísca pode deflagrar um movimento de grandes proporções. Em 2013, foram os R$ 0,20 [do reajuste das passagens de ônibus], que acabaram se tornando uma outra coisa, e agora foi a questão da precificação dos derivados de petróleo.
Surpreende que não tenha ocorrido antes?
Uma das coisas mais imprevisíveis é como se inicia um processo desses. É um sistema caótico. Eu tenho usado a imagem de um físico quântico que tem um experimento em que você constrói uma torre delgada de areia e joga um único grão no topo. Três coisas podem acontecer: ou o grão de areia repousa no local exato onde caiu, ou o grão de areia escorrega suavemente até a base da torre, ou o grão de areia cai num ponto exato da torre e ela desaba.
A política brasileira está jogando o grãozinho de areia todos os dias nessa torre e ela é extremamente frágil. O sistema de poder se tornou extremamente frágil por tudo que vem acontecendo e por tudo que a Operação Lava Jato escancarou.
É possível identificar o início desse processo?
Acho que o primeiro ponto que chamou realmente a atenção para essa realidade brasileira foram as manifestações de junho de 2013. Eu me lembro que, quando as manifestações ganharam as ruas, o então secretário de Dilma Rousseff, Gilberto Carvalho, declarou que o povo estava sendo ingrato.
O Brasil não passou por algo equivalente à Revolução Francesa e à Americana. Ainda estamos vivendo numa espécie de antigo regime em que os governantes acreditam que as pessoas existem para servi-los, e não o contrário. Eles lidam com a sociedade civil como se ela fosse um ente servil e tutelar, que existe para render tributos e prestígio.
E acho que estamos caminhando para uma situação, que eu espero que seja resolvida nas urnas, quando vamos questionar a prevalência desse antigo regime caracterizado por duas realidades que foram muito bem explicitadas pela Lava Jato.
A primeira é um patronato político que usa o poder para se perpetuar nele e age como se o poder fosse um patrimônio. Aí entra a noção de patrimonialismo de Raymundo Faoro [1925-2003]. E isso vale para todos os grupos políticos que passaram pelo Palácio do Planalto.
Aliado a esse grupo existe um segmento muito relevante do setor privado, do empresariado brasileiro, que, em vez de buscar o crescimento de seus negócios no mercado, criando valor pela inovação e pela eficiência, busca crescer por meio de acesso privilegiado a governantes, num jogo de caça às rendas.
Duas empresas brasileiras colocaram o Estado brasileiro na sua folha de pagamentos. A aliança desses dois grupos constitui o estado patrimonialista no Brasil. A Lava Jato escancarou essa realidade, e grãos de areia estão caindo nessa torre de poder.
O que ameaça a torre despencar agora?
A Lava Jato e o esgotamento do ciclo de expansão fiscal que começou em 1988. Naquele ano, tínhamos uma carga tributária normal para um país de renda média de 24% do PIB [Produto Interno Bruto]. De lá para cá, todos os governos, sem exceção, aumentaram a carga tributária no Brasil. Hoje, ela está em torno de 34% do PIB.
Além disso, o Estado tem um déficit nominal de 6% do PIB. Então, estamos em um país em que 40% da renda nacional transita pelo setor público.
A população não sente que isso a beneficiou?
A capacidade de investimento do Estado caiu de 1988 pra cá. Metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. Nossos indicadores de saúde, educação, segurança são deploráveis. O Bolsa Família, que é o principal programa de transferência de renda do governo, representa 0,5% do PIB. É praticamente a migalha que cai da mesa. E olha o impacto que tem para dezenas de milhões de famílias.
Então, realmente tem algo profundamente errado nas finanças públicas brasileiras. Esta revolta dos caminhoneiros é o embrião de rebelião tributária.
O que é uma rebelião tributária?
É uma insubordinação que começa quando a população não aceita mais a legitimidade do governo para tributá-la. A revolução americana começou com o lema “no taxation without representantion” [não há tributação sem representação].
Qual foi o grão de areia que detonou esse possível início de rebelião tributária?
Eu admiro a melhoria da governança das estatais brasileiras a partir do governo Temer. Acho que Petrobras, Eletrobras, Infraero melhoraram significativamente em governança e seriedade de gestão. Mas a Petrobras cometeu um erro grave na metodologia de fixação dos preços dos derivados de petróleo.
Fomos de um extremo ao outro, o que é muito comum no Brasil. Fomos do extremo de uma mão muito pesada no governo Dilma —que represou a correção dos derivados de petróleo para segurar a inflação no curto prazo e acabou gerando um enorme desequilíbrio— para outro extremo de fundamentalismo de mercado, equivocado nesse caso.
Por que esse mecanismo é equivocado?
Porque você não pode mudar o preço dos derivados de petróleo nas refinarias todos os dias, usando uma metodologia que é calcada em dois preços de alta frequência e de muita volatilidade, que são o preço do petróleo no mercado internacional e a taxa e câmbio em um regime flutuante.
Transmitir para o consumidor a volatilidade do mercado de petróleo mundial e da variação da taxa de câmbio no Brasil todos os dias é uma maluquice. Primeiro porque cria uma enorme imprevisibilidade e depois porque tem situações de volatilidade transitórias que levam a traumas na população.
Se até o Banco Central, no câmbio flutuante, utiliza instrumentos para atenuar a volatilidade do câmbio, como no derivado de petróleo, que é tão sensível para tanta gente na população, você vai transmitir essa volatilidade diariamente para o consumidor final?
É lógico que tem que ter realismo tarifário. Agora, você acoplar a isso, numa base diária, a volatilidade do mercado internacional de petróleo e do câmbio é um erro grave.
O senhor acha que a população tende a repudiar ou se solidarizar com os caminhoneiros?
A minha impressão é que a população, de modo geral, apoia. Agora, o que não dá para aceitar é que o direito de greve, que é legítimo, intocável, se transforme no direito de parar e chantagear o país, bloqueando as vias públicas. Isso não é previsto dentro da ordem democrática de um Estado ordenado.
Como o senhor avalia a reação do governo?
Chamou a atenção que o governo tenha deixado chegar a esse ponto antes de começar a agir. A reação do governo foi atrasada, lenta e excessiva. Estão concedendo coisas que não deveriam estar na negociação. Eles, realmente, estão muito assustados com a situação que se criou. Fizeram aquela confusão inexplicável do PIS/Cofins na Câmara. Não dá para entender aquilo. Foi muito atabalhoado e mostra um governo que está completamente rendido, à mercê dos fatos.
Isso aumenta o risco de que uma rebelião tributária ocorra de fato?
Você usou a palavra certa, é um risco. O risco é que outros setores percebendo a fragilidade do governo fiquem animados a tentar chantageá-lo também. Eu acho que os setores organizados da sociedade sentiram o gosto de sangue, porque perceberam a vulnerabilidade deste final de governo Temer.
A disseminação desse movimento poderia ter consequências desestabilizadoras? O senhor disse ter se assustado com as faixas pedindo intervenção militar nos bloqueios.
Acho que tem dois riscos neste momento. Um deles é que o desencantamento com a política leve a uma posição de indiferença e de abandono de qualquer pretensão de mudança por meio da democracia, do voto. O outro é a violência. A ideia de que precisa haver uma ruptura, um tipo de ação violenta, de ação transgressiva. O que também terminaria mal.
A democracia existe para permitir correções de voto e mudanças, alternância de poder. Estamos a quatro meses da eleição. Acho perigoso que o quadro se complique a tal ponto que coloque em risco até mesmo a realização de eleições em um clima minimamente civilizado, que permita o debate e o uso dessa oportunidade para tentar melhorar o país.
Como a situação pode ser controlada para evitar esses desfechos?
Acho que o primeiro ponto é garantir o cumprimento do acordo que foi feito. Embora ele esteja mal desenhado, é o que se tem. E acho que é preciso reestabelecer a normalidade do funcionamento do sistema econômico.
Senão vamos para uma situação de desorganização aguda do sistema produtivo e da própria organização social. Você tem o desabastecimento de hospitais, de alimentos e população reage querendo se proteger.
Estava lembrando hoje que essa questão dos caminhoneiros esteve muito presente no período que antecedeu a queda de Salvador Allende no Chile. É um grupo com enorme potencial disruptivo. É muito preocupante.
Existe o risco de um desfecho semelhante no Brasil, com a queda do presidente Temer?
Eu tendo a crer que sim. Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto. E acho que, se a situação continuar se agravando e ele se mostrar impotente para cumprir o acordo que firmou com os representantes do movimento, a situação dele caminhará para a insustentabilidade.
RAIO-X
Eduardo Giannetti da Fonseca, 61
Graduado em economia e em ciências sociais pela USP e doutor em economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), foi professor da USP, do Insper e da Universidade de Cambridge; atuou como assessor econômico da ex-senadora Marina Silva nas campanhas presidenciais de 2010 e 2014
Erramos: o texto foi alterado
A greve de caminhoneiros no Chile antecipou a queda de Salvador Allende (em 1973), e não do ditador Augusto Pinochet, como informava a primeira versão deste texto. Pinochet sucedeu o governo de Allende.