domingo, 27 de maio de 2018

'Ato de caminhoneiros pode ser o embrião de uma rebelião tributária', diz economista, FSP

Érica Fraga
SÃO PAULO
As paralisações dos caminhoneiros podem ser o embrião de uma rebelião tributária, que ocorre quando a população deixa de aceitar a legitimidade do governo para cobrar impostos.
O diagnóstico é do economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, para quem a má condução da crise pelo governo de Michel Temer levou outros setores organizados da sociedade a perceberem sua vulnerabilidade.
Para ele, um dos riscos criados por essa situação é que a disseminação do movimento dos caminhoneiros force a saída do presidente antes da eleição marcada para outubro.
“Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto.”
Outro temor do economista é que uma radicalização dos ânimos impeça a realização do pleito presidencial em “um clima minimamente civilizado”.
Para evitar isso, na opinião de Giannetti, o governo precisa garantir que o acordo que foi feito com os caminhoneiros seja cumprido e restabelecer a normalidade do funcionamento da economia.
O economista concedeu a entrevista na sexta-feira (25) à noite, após enfrentar o que ele classificou como um “pesadelo logístico” para voltar do Nordeste, onde estava a trabalho, para São Paulo.
Ao ter um voo cancelado de Natal para Maceió, Giannetti precisou alugar um carro, chegou a ficar sem gasolina e se surpreendeu com faixas pedindo intervenção militar nos bloqueios da estrada.
“Eu fiquei chocado”.

Há dois anos, o senhor disse que se perguntava até onde o tecido social brasileiro suportaria as consequências da crise econômica. A confusão atual pode ser o início de ruptura do tecido social? 
Não vou declarar que é o início, mas a situação é muito característica de rápida disseminação, porque as pessoas estão com os nervos à flor da pele e a situação é muito instável, qualquer faísca pode deflagrar um movimento de grandes proporções. Em 2013, foram os R$ 0,20 [do reajuste das passagens de ônibus], que acabaram se tornando uma outra coisa, e agora foi a questão da precificação dos derivados de petróleo. 
Surpreende que não tenha ocorrido antes? 
Uma das coisas mais imprevisíveis é como se inicia um processo desses. É um sistema caótico. Eu tenho usado a imagem de um físico quântico que tem um experimento em que você constrói uma torre delgada de areia e joga um único grão no topo. Três coisas podem acontecer: ou o grão de areia repousa no local exato onde caiu, ou o grão de areia escorrega suavemente até a base da torre, ou o grão de areia cai num ponto exato da torre e ela desaba.
A política brasileira está jogando o grãozinho de areia todos os dias nessa torre e ela é extremamente frágil. O sistema de poder se tornou extremamente frágil por tudo que vem acontecendo e por tudo que a Operação Lava Jato escancarou. 
É possível identificar o início desse processo? 
Acho que o primeiro ponto que chamou realmente a atenção para essa realidade brasileira foram as manifestações de junho de 2013. Eu me lembro que, quando as manifestações ganharam as ruas, o então secretário de Dilma Rousseff, Gilberto Carvalho, declarou que o povo estava sendo ingrato.
O Brasil não passou por algo equivalente à Revolução Francesa e à Americana. Ainda estamos vivendo numa espécie de antigo regime em que os governantes acreditam que as pessoas existem para servi-los, e não o contrário. Eles lidam com a sociedade civil como se ela fosse um ente servil e tutelar, que existe para render tributos e prestígio.
E acho que estamos caminhando para uma situação, que eu espero que seja resolvida nas urnas, quando vamos questionar a prevalência desse antigo regime caracterizado por duas realidades que foram muito bem explicitadas pela Lava Jato. 
A primeira é um patronato político que usa o poder para se perpetuar nele e age como se o poder fosse um patrimônio. Aí entra a noção de patrimonialismo de Raymundo Faoro [1925-2003]. E isso vale para todos os grupos políticos que passaram pelo Palácio do Planalto.
Aliado a esse grupo existe um segmento muito relevante do setor privado, do empresariado brasileiro, que, em vez de buscar o crescimento de seus negócios no mercado, criando valor pela inovação e pela eficiência, busca crescer por meio de acesso privilegiado a governantes, num jogo de caça às rendas.
Duas empresas brasileiras colocaram o Estado brasileiro na sua folha de pagamentos. A aliança desses dois grupos constitui o estado patrimonialista no Brasil. A Lava Jato escancarou essa realidade, e grãos de areia estão caindo nessa torre de poder.
O que ameaça a torre despencar agora? 
Lava Jato e o esgotamento do ciclo de expansão fiscal que começou em 1988. Naquele ano, tínhamos uma carga tributária normal para um país de renda média de 24% do PIB [Produto Interno Bruto]. De lá para cá, todos os governos, sem exceção, aumentaram a carga tributária no Brasil. Hoje, ela está em torno de 34% do PIB. 
Além disso, o Estado tem um déficit nominal de 6% do PIB. Então, estamos em um país em que 40% da renda nacional transita pelo setor público. 
A população não sente que isso a beneficiou? 
A capacidade de investimento do Estado caiu de 1988 pra cá. Metade dos domicílios não tem coleta de esgoto. Nossos indicadores de saúde, educação, segurança são deploráveis. O Bolsa Família, que é o principal programa de transferência de renda do governo, representa 0,5% do PIB. É praticamente a migalha que cai da mesa. E olha o impacto que tem para dezenas de milhões de famílias.
Então, realmente tem algo profundamente errado nas finanças públicas brasileiras. Esta revolta dos caminhoneiros é o embrião de rebelião tributária.
O que é uma rebelião tributária? 
É uma insubordinação que começa quando a população não aceita mais a legitimidade do governo para tributá-la. A revolução americana começou com o lema “no taxation without representantion” [não há tributação sem representação].
Qual foi o grão de areia que detonou esse possível início de rebelião tributária? 
Eu admiro a melhoria da governança das estatais brasileiras a partir do governo Temer. Acho que Petrobras, Eletrobras, Infraero melhoraram significativamente em governança e seriedade de gestão. Mas a Petrobras cometeu um erro grave na metodologia de fixação dos preços dos derivados de petróleo. 
Fomos de um extremo ao outro, o que é muito comum no Brasil. Fomos do extremo de uma mão muito pesada no governo Dilma —que represou a correção dos derivados de petróleo para segurar a inflação no curto prazo e acabou gerando um enorme desequilíbrio— para outro extremo de fundamentalismo de mercado, equivocado nesse caso.
Por que esse mecanismo é equivocado? 
Porque você não pode mudar o preço dos derivados de petróleo nas refinarias todos os dias, usando uma metodologia que é calcada em dois preços de alta frequência e de muita volatilidade, que são o preço do petróleo no mercado internacional e a taxa e câmbio em um regime flutuante.
Transmitir para o consumidor a volatilidade do mercado de petróleo mundial e da variação da taxa de câmbio no Brasil todos os dias é uma maluquice. Primeiro porque cria uma enorme imprevisibilidade e depois porque tem situações de volatilidade transitórias que levam a traumas na população.
Se até o Banco Central, no câmbio flutuante, utiliza instrumentos para atenuar a volatilidade do câmbio, como no derivado de petróleo, que é tão sensível para tanta gente na população, você vai transmitir essa volatilidade diariamente para o consumidor final? 
É lógico que tem que ter realismo tarifário. Agora, você acoplar a isso, numa base diária, a volatilidade do mercado internacional de petróleo e do câmbio é um erro grave.
O senhor acha que a população tende a repudiar ou se solidarizar com os caminhoneiros? 
A minha impressão é que a população, de modo geral, apoia. Agora, o que não dá para aceitar é que o direito de greve, que é legítimo, intocável, se transforme no direito de parar e chantagear o país, bloqueando as vias públicas. Isso não é previsto dentro da ordem democrática de um Estado ordenado.
Como o senhor avalia a reação do governo? 
Chamou a atenção que o governo tenha deixado chegar a esse ponto antes de começar a agir. A reação do governo foi atrasada, lenta e excessiva. Estão concedendo coisas que não deveriam estar na negociação. Eles, realmente, estão muito assustados com a situação que se criou. Fizeram aquela confusão inexplicável do PIS/Cofins na Câmara. Não dá para entender aquilo. Foi muito atabalhoado e mostra um governo que está completamente rendido, à mercê dos fatos. 
Isso aumenta o risco de que uma rebelião tributária ocorra de fato? 
Você usou a palavra certa, é um risco. O risco é que outros setores percebendo a fragilidade do governo fiquem animados a tentar chantageá-lo também. Eu acho que os setores organizados da sociedade sentiram o gosto de sangue, porque perceberam a vulnerabilidade deste final de governo Temer.
A disseminação desse movimento poderia ter consequências desestabilizadoras? O senhor disse ter se assustado com as faixas pedindo intervenção militar nos bloqueios. 
Acho que tem dois riscos neste momento. Um deles é que o desencantamento com a política leve a uma posição de indiferença e de abandono de qualquer pretensão de mudança por meio da democracia, do voto. O outro é a violência. A ideia de que precisa haver uma ruptura, um tipo de ação violenta, de ação transgressiva. O que também terminaria mal. 
A democracia existe para permitir correções de voto e mudanças, alternância de poder. Estamos a quatro meses da eleição. Acho perigoso que o quadro se complique a tal ponto que coloque em risco até mesmo a realização de eleições em um clima minimamente civilizado, que permita o debate e o uso dessa oportunidade para tentar melhorar o país.
Como a situação pode ser controlada para evitar esses desfechos? 
Acho que o primeiro ponto é garantir o cumprimento do acordo que foi feito. Embora ele esteja mal desenhado, é o que se tem. E acho que é preciso reestabelecer a normalidade do funcionamento do sistema econômico.
Senão vamos para uma situação de desorganização aguda do sistema produtivo e da própria organização social. Você tem o desabastecimento de hospitais, de alimentos e população reage querendo se proteger. 
Estava lembrando hoje que essa questão dos caminhoneiros esteve muito presente no período que antecedeu a queda de Salvador Allende no Chile. É um grupo com enorme potencial disruptivo. É muito preocupante. 
Existe o risco de um desfecho semelhante no Brasil, com a queda do presidente Temer? 
Eu tendo a crer que sim. Esse desgaste foi muito grande. Não estou prevendo isso, mas não descarto. E acho que, se a situação continuar se agravando e ele se mostrar impotente para cumprir o acordo que firmou com os representantes do movimento, a situação dele caminhará para a insustentabilidade.

RAIO-X

Eduardo Giannetti da Fonseca, 61
Graduado em economia e em ciências sociais pela USP e doutor em economia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), foi professor da USP, do Insper e da Universidade de Cambridge; atuou como assessor econômico da ex-senadora Marina Silva nas campanhas presidenciais de 2010 e 2014
Erramos: o texto foi alterado

A greve de caminhoneiros no Chile antecipou a queda de Salvador Allende (em 1973), e não do ditador Augusto Pinochet, como informava a primeira versão deste texto. Pinochet sucedeu o governo de Allende.

Presidente do STF, Cármen Lúcia diz que enfrentou grupos de pressão sem ceder, FSP

BRASÍLIA
A crise política frustrou a pretensão da ministra Cármen Lúcia de marcar sua gestão na presidência do Supremo, que termina em setembro, como o exercício da pacificação social.
Coube a ela apaziguar ministros nos embates sobre a Lava Jato, belicosidade que minimiza.
Sua gestão deverá ser lembrada pelo combate à violência contra a mulher, em especial as presas grávidas e lactantes. Investiu em pesquisas e enfrentou a resistência dos tribunais para dar visibilidade ao que chama de "verdade remuneratória" dos magistrados: subsídios, gratificações e penduricalhos. 
"O Judiciário precisa de mudanças estruturais. Há estados em que mais da metade das comarcas não têm juízes", diz. Ela recebeu a Folha em seu gabinete, na terça (22).

Folha - A sra. disse que gostaria de marcar sua gestão como o exercício da pacificação social. Tem sido bem-sucedida?
Cármen Lúcia - A tentativa de pacificar foi permanente. Não consegui a pacificação social, pelo menos do que era minha atribuição. Porém, dei o exemplo de serenidade nos momentos mais difíceis.
Como enfrenta a animosidade entre ministros? 
Com muita tranquilidade. Essa eventual tensão se dá nos julgamentos, na tentativa de convencimento do outro. As pessoas acham que aquilo prevalece depois do julgamento. Ao final da sessão, os ministros saem, conversam entre si.
Como lida com o voluntarismo de ministros? 
Acho que não é tanto o voluntarismo. Os ministros têm processos que eles acham que são preferenciais. Há, por parte de alguns —e só por parte de alguns— pedidos de inclusão em pauta. Nem sempre você pode colocar de imediato. Não tive a experiência que indicasse alguma coisa muito pessoal.
Lembrando Catilina, senador romano, até quando Gilmar Mendesvai abusar da sua paciência?
O jeito do ministro é esse. Me dou muito bem com ele. Na verdade, não acho que seja por voluntarismo. Ele defende as suas opiniões, aquilo no que acredita, com uma certa contundência que às vezes é mal compreendida. Mas o ministro sempre motiva muito, é preciso reconhecer isso.
Considera aceitável ministros abandonarem o plenário para atender a interesses privados?
A prioridade é sempre o julgamento do STF. Quando acontece de eles saírem, a justificativa geralmente oferecida é que se estendeu em demasia a sessão, e eles tinham assumido um compromisso não prevendo isso.
Por que os ministros demoram para devolver processos com pedidos de vista? Reduzir os prazos foi uma promessa sua.
Eu coloquei sessões inteiras em que só havia devolução de vistas. Nós estamos com mais de 900 processos na pauta. A tentativa é priorizar aquele que foi devolvido. Há vistas devolvidas em 2012 e 2013 que não conseguimos chamar.
Qual a sua avaliação da delação da JBS?
A colaboração teve a homologação do ministro Edson Fachin, ele fez a avaliação segundo seus critérios. Depois, o plenário reafirmou a competência dele como relator. Foi importante ter marcado isso.
E sobre a prisão em segunda instância?
O STF vinha aceitando a execução em segunda instância e, em 2009, houve a mudança de orientação. De 2009 a 2016, alguns ministros que formavam a corrente vencedora começaram a dizer que era preciso discutir, porque se estava levando à impunidade. Em 2016, foi reafirmada a possibilidade do início da execução em segunda instância. A maioria aprovou, dando efeito vinculante.
Essa mudança recente permanecerá na próxima gestão?
Eu não sou capaz de prever. Na minha gestão não se pôs nenhuma razão específica. Não tem por que passar na frente de outros casos para rediscutir.
Como vê a crítica de que o STF foi rigoroso com Lula e benevolente com Renan Calheiros e Aécio Neves?
O que se teve com o ex-presidente foi o julgamento de um habeas corpus ao qual se aplicou a tese que vem prevalecendo na jurisprudência. Não se trata aqui de cuidar de uma ou de outra pessoa. E nos outros casos, nós temos inquéritos e ações ainda em andamento. Não se trata de benevolência.
Qual era a urgência da conversa com Temer em sua casa, num sábado? Não teria sido mais prudente encontrá-lo no STF?
Nem era um caso de urgência. Tinha sido decretada a intervenção no Rio, eu tinha estado lá. Foi uma conversa sobre a questão carcerária e a segurança pública. Não escondi, não estava na agenda porque era na minha casa.
Como tem sido o relacionamento entre a toga e a farda? Celso de Mello criticou as "intervenções pretorianas" do general Eduardo Villas Bôas. Combinou com a sra.?
Não. Nós estamos numa época em que as pessoas falam muito. E há uma quase virulência em muitas falas, gerando a necessidade de resposta. As instituições têm que ser preservadas.
Quais foram as principais marcas de sua gestão no CNJ?
A transparência da remuneração de todos os magistrados. O cadastro de presos, para se saber quais são as políticas necessárias a serem adotadas. A questão das mulheres grávidas e lactantes com prisão decretada. O programa Justiça pela Paz em Casa, com a criação de varas de combate à violência doméstica.
O corregedor nacional, ministro João Otávio de Noronha, faz inspeções nos tribunais, mas não leva os relatórios a plenário. Ele assumiu prometendo blindar os juízes.
Ele vai levar agora [a plenário]. Eles queriam fazer as comparações no final. Por exemplo, por que um tribunal tem produção 30% a menos do que outro...
E quanto às eventuais irregularidades nos tribunais?
Acho que ele vai dar transparência. O número de processos nos quais se teve julgamentos de magistrados é muitas vezes maior do que em outras gestões.
Mas presidentes punidos anos atrás, porque não cumpriram determinações do CNJ na época, foram absolvidos na sua gestão.
Ainda tem os casos dos que foram afastados e, depois de um tempo, mandaram voltar...
Com devolução corrigida do que não foi pago enquanto estiveram afastados por malfeitorias. Está errada essa leitura?
Não. Está correta.
Duvidava-se de sua capacidade de enfrentar grupos de pressão.
Eu mantive o enfrentamento na transparência da remuneração dos magistrados. Ex-ministros e conselheiros disseram que eu não conseguiria. Desde outubro, há uma plataforma com a demonstração de quanto se paga. Eu resisto às pressões. Eu não cedo.