terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Sexo no blockchain - LUIZ FELIPE PONDÉ, FSP


FOLHA DE SP - 29/01

O tema assédio está na moda. Entre os extremos, a vida segue seu curso, às vezes, dando a impressão de que poderá se tornar irrespirável em algum momento.

Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.

Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.

É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.

Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.

A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.

"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?

Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.

Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.

É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.

Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".

O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.

Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.

O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.

O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.

Patrulheiros da moral criam tribunais para decidir quem pode andar nas ruas - RANIER BRAGON


FOLHA DE SP - 30/01


"Cagão" e "bosta" foram algumas das delicadezas dirigidas a Gilmar Mendesem um voo no sábado (27). Dias antes, duas mulheres haviam apupado o ministro do STF em Portugal. Uma delas disse rogar para que Deus o enviasse sem escalas ao quinto dos infernos.

Tudo registrado em vídeo por celulares e espalhado nas redes sociais.

Atos assim falam mais sobre quem se presta a eles do que qualquer outra coisa. O alvo dos autointitulados "cidadãos de bem" é pego quase sempre só, tal um colegial paga-lanches assolado na hora do recreio.

Essa turma de patriotas já decidiu no seu tribunal particular e inapelável quem pode embarcar em voos comerciais ou jantar em restaurantes.

Dane-se o contraditório, quem pensa diferente, o Estado de direito, as leis, as formas mais dignas e menos covardes de protesto. Em suma, danem-se as instituições democráticas –essas porcarias todas que "deveriam ser fechadas" porque não "prestam pra nada", nas palavras de um dos bravateiros do voo de Gilmar.

Nem é preciso dizer que muita gente que arrota moral e bons costumes nas redes sociais não suportaria 15 minutos de escrutínio sério da própria vida. Nem que toda a bravura surge, normalmente, quando estão em bando, contra oponente preferivelmente solitário. Nem que boa parte deseja, na verdade, é a volta de generais a nos ditar goela abaixo o que fazer ou deixar de fazer.

A história está repleta de vestais a atirar pedras nas adúlteras, tocar fogo às "bruxas" ou decidir no berro quem pode ou não andar nas ruas.

Gilmar Mendes mandou soltar alvos da Justiça contra as quais pesam sérias acusações, entre eles empresário com quem tem laço familiar. Tem questionável relação com o governo, com encontros a portas fechadas inimagináveis a um magistrado com pudor institucional. E uma série de outras práticas controversas.

Nada disso, porém, justifica o grotesco teatro encenado pelos talibãs da moral, família e bons costumes.

Sem preconceito - ELIANE CANTANHÊDE, OESP


ESTADÃO - 30/01

Previdência, Eletrobrás e Embraer: não aos dogmas, sim ao debate real e maduro

Além das denúncias, da impopularidade e das quedas de braço com a Justiça, o presidente Michel Temer está decidido a enfrentar preconceitos e dar racionalidade aos debates sobre reforma da Previdência e pulverização de ações da Eletrobrás. A “combinação” Embraer-Boeing pode pegar carona na discussão. A ideia é resistir ao “não sei, não vi, não provei, mas não gostei”. Não é inteligente, não é razoável e não leva o Brasil a lugar nenhum. É preciso saber, ver, ouvir especialistas e versões divergentes para ser a favor ou contra, ou a favor só em parte.

“Reforma da Previdência? Sou contra.” Por quê? “Porque só prejudica os pobres.” Isso é efeito da campanha deseducativa, que finge estar defendendo “os pobres” quando, na verdade, embute a defesa de privilégios das carreiras mais bem pagas do Estado.

São elas, junto com partidos ditos de esquerda, que operam contra a reforma, não para proteger a aposentadoria e pensões de trabalhadores de baixa renda, mas sim aposentadorias de mais de R$ 30 mil de algumas categorias – caso de juízes e magistrados. A reforma é justamente para evitar que o sistema entre em colapso ao longo dos anos e a base da pirâmide – que é quem efetivamente precisa de aposentadoria – acabe ficando sem ela.


Defenda-se a Justiça, não boquinhas como aposentadorias milionárias de setores do funcionalismo, quando a grande maioria dos trabalhadores tem um teto de R$ 5.700, ou como auxílio-moradia irrestrito para juízes e altos funcionários dos três Poderes.

No caso da Eletrobrás, Temer e o ministro das Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, fazem tudo para fugir da palavrinha maldita, “privatização”, e insistem que a intenção é pulverizar suas ações, arejá-la, atrair investimentos privados, estender a ela a chance dada, lá atrás, à Vale do Rio Doce, que passou a empregar nove vezes mais pessoas depois da... privatização.

O governo diz que pretende manter ações e parte do controle estratégico da empresa, num sistema “golden share”, mas a maior reação no Congresso vem principalmente do Nordeste e de Minas, que recorrem a um discurso “nacionalista” para disfarçar a importância da Chesf e de Furnas, respectivamente, como generosos cabides de emprego para apadrinhados políticos. Contra a reforma, o “interesse dos pobres”. Contra a modernização da Eletrobrás, “o interesse nacional”.

Fernando Filho cita, objetivamente, um dado do ministério: de 2004 a 2016, a União deixou de arrecadar em torno de R$ 165 bilhões por manter a Eletrobrás exatamente onde está, sem contar os grandes valores que a União teve de despejar na companhia.

Quanto à Embraer: é um orgulho dos brasileiros, campeã internacional no segmento de jatos executivos e produzindo aviões tanto para a área civil como para a área militar. Empresa moderna, com técnicos competentíssimos, especialmente após privatizada.

Temer já disse e repetiu que a União não vai abrir mão do controle da Embraer. E a sueca Saab já enviou a Brasília um alto representante alertando para a questão da transferência de tecnologia no jato Gripen para a FAB, em parceria com a Embraer. De gabinete em gabinete, a Boeing garante: qualquer acordo respeitará o controle da União e manterá a blindagem e a autonomia do programa dos Gripen.

Enfim, não se trata aqui de fazer campanha pela reforma, nem pela privatização (ou tenha lá que nome tiver) da Eletrobrás, nem pela “combinação” (novamente, tenha lá que nome tiver) entre a Embraer e a Boeing. Trata-se, sim, de defender um debate aberto, ponderado, maduro sobre o que é e o que não é melhor para o Brasil e os brasileiros, agora e no futuro. Ou seja: sem preconceito e sem dogmas que signifiquem apenas o atraso pelo atraso.