terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Guardei o suficiente para me aposentar? MARCIA DESSEN. FSP

FOLHA DE SP - 29/01

Maria cresceu ouvindo os conselhos do pai de que devia guardar pelo menos 20% do salário para formar uma confortável reserva financeira para o futuro. Bendito conselho! Maria não desprezou o ensinamento paterno e, com muita disciplina e esforço, conseguiu acumular R$ 1 milhão!

Há algum tempo vem pensando em reduzir a carga de trabalho, ter mais tempo livre para desfrutar a vida e colher os frutos da poupança que tem. A empresa onde trabalha vem sinalizando mudanças na política de recursos humanos, renovando a equipe de colaboradores. Maria sente que, em breve, estará aposentada.

Debruçada sobre a planilha do seu orçamento, fez um exercício para definir os fluxos de receitas e despesas futuras e apurou que precisará de uma renda mensal de R$ 5.000 para complementar a pensão do INSS. E se pergunta por quanto tempo o capital de R$ 1 milhão será capaz de prover essa renda mensal antes que se esgote.

Maria definiu a renda complementar de R$ 5.000 com base nos valores atuais, mas sabe que esse valor aumentará em razão da inflação dos preços. O capital disponível também vai crescer por causa dos rendimentos da aplicação financeira que tem, mas sabe que o poder de compra desse capital diminuirá em razão da mesma inflação.

Podemos ignorar o impacto da inflação nos dois fluxos se utilizarmos uma taxa de juros real, acima da inflação, para projetar o crescimento desse capital. Seremos mais conservadores ainda, lembrando que além da inflação haverá pagamento de taxas administrativas e Imposto de Renda. Vamos utilizar uma taxa de juros real líquida de 0,20% ao mês.
Editoria de arte/Folhapress




Outra premissa deve ser definida: Maria deseja preservar o capital e criar um fluxo perpétuo de saques ou pretende esgotar o capital ao longo do tempo? No caso dela, a segunda opção. Como não tem familiares que dependem de sua ajuda financeira, pretende fazer saques até esgotar o capital.

Fazendo cálculos rudimentares e supondo que não haverá nenhum rendimento, podemos dividir 1 milhão por 5.000 e dizer que o dinheiro será suficiente para 200 saques (16,6 anos). Entretanto, e felizmente, o capital atual produzirá juros que estenderão sua duração.

Alimentamos uma calculadora financeira com as premissas de Maria: valor presente de R$ 1 milhão, retiradas mensais (PMT) de R$ 5.000, juros de 0,20 (i). Pressionada, a tecla (n) indicará a quantidade de saques: 256 meses (21,3 anos).

Ela não gostou do resultado. Um cálculo feito anteriormente, estimando juros de 0,5% ao mês, indicou que o capital suportaria cerca de mil saques, mais de 80 anos, induzindo ao erro de imaginar que poderia fazer retiradas maiores sem correr o risco de o dinheiro acabar antes de sua morte.

Maria entendeu a importância de ser prudente nas projeções. Se a taxa de juro real for maior, ela poderá fazer saques extraordinários, uma viagem a mais, um curso novo, desfrutar a vida como bem entender.

Considerando sua expectativa de vida de mais 35 anos (420 meses), projetando juros de 0,20% e saques de R$ 5.000, a calculadora indica um valor presente de R$ 1,42 milhão. Ela precisa, portanto, aumentar seu capital ou reduzir o valor das retiradas para minimizar a incerteza dessa projeção.

A tabela informa a quantidade de retiradas que determinado capital suporta até que se esgote, com premissa de taxa de juros real líquida de 0,2% ao mês. Há casos em que o capital se esgota na próxima geração. Em outros, quando o saque é igual ou inferior ao valor dos juros reais, o capital não acaba nunca, provê um fluxo perpétuo de pagamentos.

Sexo no blockchain - LUIZ FELIPE PONDÉ, FSP


FOLHA DE SP - 29/01

O tema assédio está na moda. Entre os extremos, a vida segue seu curso, às vezes, dando a impressão de que poderá se tornar irrespirável em algum momento.

Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.

Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.

É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.

Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.

A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.

"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?

Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.

Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.

É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.

Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".

O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.

Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.

O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.

O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.

Patrulheiros da moral criam tribunais para decidir quem pode andar nas ruas - RANIER BRAGON


FOLHA DE SP - 30/01


"Cagão" e "bosta" foram algumas das delicadezas dirigidas a Gilmar Mendesem um voo no sábado (27). Dias antes, duas mulheres haviam apupado o ministro do STF em Portugal. Uma delas disse rogar para que Deus o enviasse sem escalas ao quinto dos infernos.

Tudo registrado em vídeo por celulares e espalhado nas redes sociais.

Atos assim falam mais sobre quem se presta a eles do que qualquer outra coisa. O alvo dos autointitulados "cidadãos de bem" é pego quase sempre só, tal um colegial paga-lanches assolado na hora do recreio.

Essa turma de patriotas já decidiu no seu tribunal particular e inapelável quem pode embarcar em voos comerciais ou jantar em restaurantes.

Dane-se o contraditório, quem pensa diferente, o Estado de direito, as leis, as formas mais dignas e menos covardes de protesto. Em suma, danem-se as instituições democráticas –essas porcarias todas que "deveriam ser fechadas" porque não "prestam pra nada", nas palavras de um dos bravateiros do voo de Gilmar.

Nem é preciso dizer que muita gente que arrota moral e bons costumes nas redes sociais não suportaria 15 minutos de escrutínio sério da própria vida. Nem que toda a bravura surge, normalmente, quando estão em bando, contra oponente preferivelmente solitário. Nem que boa parte deseja, na verdade, é a volta de generais a nos ditar goela abaixo o que fazer ou deixar de fazer.

A história está repleta de vestais a atirar pedras nas adúlteras, tocar fogo às "bruxas" ou decidir no berro quem pode ou não andar nas ruas.

Gilmar Mendes mandou soltar alvos da Justiça contra as quais pesam sérias acusações, entre eles empresário com quem tem laço familiar. Tem questionável relação com o governo, com encontros a portas fechadas inimagináveis a um magistrado com pudor institucional. E uma série de outras práticas controversas.

Nada disso, porém, justifica o grotesco teatro encenado pelos talibãs da moral, família e bons costumes.