domingo, 29 de outubro de 2017

A indústria virou suco? - SÉRGIO LAZZARINI


REVISTA VEJA

“Serviços urbanos” podem fazer parte do rol de setores modernos


NO INÍCIO dos anos 80, surgiu na Avenida Paulista, em São Paulo, uma lanchonete com nome muito curioso: O Engenheiro que Virou Suco. Inspirado no título de um premiado filme nacional da época (O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade), o empreendedor montou e batizou a sua lanchonete após ter sido desligado de uma indústria mecânica na qual trabalhava havia anos. Essa migração da indústria para serviços se acentuou ao longo do tempo. Industriais brasileiros, vários deles agremiados na mesma Avenida Paulista, até hoje denunciam o declínio da indústria e pedem mais apoio do governo. Essa crítica tem eco entre alguns economistas de traço desenvolvimentista. Dani Rodrik, professor de Harvard, rotula a indústria como um setor “moderno”, de alta produtividade, em contraposição à agricultura, setor dito “tradicional”. Para esses economistas, países evoluem quando mais pessoas saem da agricultura e se empregam na indústria. Perder gente para serviços seria um sintoma de desindustrialização precoce e destruição de postos modernos de trabalho.

Surpreende, assim, um novo estudo do próprio Rodrik, em coautoria com Xinshen Diao e Margaret McMillan, no qual se examina a experiência recente de alguns países na América Latina e na África. A agricultura tornou-se o setor moderno: incorporou tecnologias, aumentou a produtividade e ajudou a acelerar o crescimento de vários países. Esses economistas (finalmente!) percebem que talvez o mais importante não seja se o empresário planta tomates ou produz pneus; o importante é se sua empresa incorpora técnicas eficientes de produção e gerencia adequadamente os seus recursos. Por certo, se um setor fica mais eficiente, pode acabar liberando gente para trabalhar em setores menos qualificados, incluindo serviços de baixa produtividade. Mas os autores agora também admitem que “serviços urbanos” podem fazer parte do rol de setores modernos. Uma lanchonete poderá ser altamente produtiva se incorporar sistemas para controlar os produtos, otimizar os processos de cozinha, incentivar os funcionários a aumentar as vendas e transplantar essas práticas para outras unidades. (A quem quiser ver isso na prática, recomendo o filme The Founder, sobre o crescimento de uma famosa franquia de sanduíches dos Estados Unidos.)

É claro, isso não significa que não deva ser dada atenção à indústria. É possível salvá-la? Aqui, ironicamente, o setor dito moderno poderia copiar as práticas dos seus pares. Imitando a agricultura, poderia buscar mais inserção internacional e mais foco em vantagens comparativas locais. Uma nova iniciativa, a Embrapii (apelidada de “Embrapa da indústria”) seleciona e apoia centros de pesquisa de excelência em associação com o setor privado, em vez de subsidiar indefinidamente setores eleitos com base em pressão política. Imitando o setor de serviços, a indústria poderia também tentar melhorar sua qualidade de atendimento, criar soluções customizadas para clientes diversos e vender inovações em lugar de produtos preconcebidos. Afinal de contas, o engenheiro pode ter virado suco, mas quem sabe se tornou mais produtivo e criativo do que seria no seu antigo posto na indústria.

Construir equilíbrio macroeconômico com juros reais baixos é possível - SAMUEL PESSÔA, FSP

FOLHA DE SP - 29/10


O Banco Central, na quarta (26), decidiu reduzir a taxa básica de juros, a Selic, de 8,25% ao ano para 7,50%. Corte de 0,75 ponto percentual.

Adicionalmente, o comunicado do Copom (Comitê de Política Monetária), órgão colegiado formado pelos diretores do Banco Central e comandado pelo seu presidente, afirmou que, "para a próxima reunião, caso o cenário básico evolua conforme esperado, e em razão do estágio do ciclo de flexibilização, o comitê vê, neste momento, como adequada uma redução moderada na magnitude de flexibilização monetária".

Ou seja, na próxima reunião, em 36 dias, se tudo ocorrer conforme as simulações dos modelos do BC —que são os mesmos modelos que todos usamos—, a taxa básica irá diminuir 0,50 ponto percentual, para 7% ao ano. É possível que um corte adicional ocorra no início de 2018.

Em janeiro, é provável que as expectativas de inflação para 2018 sejam de aproximadamente 3,5%, sinalizando que o juro real básico percebido pelas pessoas será de 3,14%. Dado que as simulações do BC sugerem que a taxa neutra de juros (aquela que mantém a inflação estável) é de aproximadamente 4,2%, haverá em 2018 estímulo monetário de pouco mais de um ponto percentual.

O estímulo monetário deve produzir um lento processo de reinflação da economia até a meta em 2020, de 4%. Qual deve ser o desenho da política monetária ao longo do ciclo de reinflação? Com o que podemos enxergar hoje, isto é, com os cenários para a recuperação da atividade econômica e para a queda da taxa de desemprego, sabemos que a ociosidade da economia deve desaparecer em meados de 2020.

Se a ociosidade desaparecerá em meados de 2020 e dado que há uma defasagem de uns três trimestres entre a política monetária e seus efeitos sobre a inflação, o BC tem que praticar juro neutro no início do quarto trimestre de 2019.

A meta de inflação em 2020 será de 4%. O juro real neutro deve ser algo por volta de 4%. Assim, no início do quarto trimestre de 2019, a taxa Selic terá que estar em torno de 8,25%. Dessa forma, ao longo dos três primeiros trimestres de 2019, a taxa Selic elevar-se-á de 7,0% (ou até um pouco menos) até aproximadamente 8,25%: ao menos cinco elevações de 0,25 ponto percentual.

Há inúmeras incertezas nesse desenho de política monetária. Não é possível saber quais serão os choques climáticos ou hídricos que atingirão a economia. Pode haver choques políticos sobre as expectativas inflacionárias, uma reversão inesperada do cenário global, entre tantas outras fontes de choques.

Além dos choques, quando olhamos os fatores estruturais, não está nada claro que a taxa neutra seja de fato 4%. Até bem pouco tempo atrás as melhores estimativas sugeriam taxa neutra na casa de 5,5%.

É possível que a ociosidade da economia feche antes do que pensamos. Esse será o caso se a destruição de capital promovida pela Nova Matriz tiver sido maior do que se julga.

Também não está claro se até lá o Congresso Nacional conseguirá aprovar as reformas que permitirão que a política fiscal deixe de ser expansionista, como tem sido na média nos últimos 25 anos, e passe a ser pelo menos neutra. Será necessário aprovar uma fortíssima reforma da Previdência e outras reformas que permitam que o gasto público não cresça sistematicamente além do crescimento da economia.

Ou seja, a construção de um equilíbrio macroeconômico com taxas de juros reais baixas é perfeitamente possível, apesar de politicamente difícil. Os juros não são elevados devido a uma conspiração da Faria Lima com o Leblon.

Leandro Karnal Presos em si, OESP

A vida é o corpo em si ou a atividade cerebral ou a combinação de ambos?

Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
29 Outubro 2017 | 03h00
Estamos vivendo mais do que em qualquer outro período da história. Yuval Harari profetiza, no livro Homo Deus, homens centenários ou mais como regra. Nunca seremos imortais, mas estamos eliminando muitas causas para mortes precoces. Nos curtos anos do século 21 que já vivemos, a medicina deu saltos extraordinários. Imaginemos o século diante de nós.
Meu médico e amigo, dr. Jairo Hidal, equivale as estatinas, remédios de controle do colesterol, a saltos do porte das vacinas e da penicilina. Ele afirmou tudo de forma mais técnica e com mais correção, e eu, na minha ignorância médica, captei dessa forma.
Estamos vivendo mais, bem mais. É dialético: temos novos problemas com doenças degenerativas associadas à idade. Crescem o Alzheimer e a demência. A perda da memória é um mal em expansão de uma humanidade mais longeva.
O cérebro é complexo e sua lógica parece estar distante da maior parte do corpo. Tivemos, no Sul, uma vizinha por mais de 50 anos. Próxima e afável, ela virou a “tia” Dulce e chegou a amadrinhar minha irmã. A relação, como costuma ocorrer no Brasil, envolveu um compadrio sólido que a tornou parte da família.
Por motivos ligados à diabete, ela foi internada em uma clínica. Em pouco tempo, o problema médico virou um declínio mental. Aquilo que vi ocorrer com minha avó sucedeu com a doce tia Dulce: o olho perdeu vida, como se nada visse. O “espelho da alma” parecia indicar que não havia mais alma ali. Foi impressionante a velocidade do processo. Havia um corpo, relativamente forte, porém a consciência parece ter dito adeus.
Não sei quais são as metamorfoses internas que ocorrem no cérebro. Como a máquina impressionante deixa de registrar o mundo, de interagir com ele, e de transformar a consciência, seja lá o que reste dela, em uma prisioneira de si.
Tenho esse medo: estar plenamente consciente e não poder interagir ou atuar com o mundo, sem voz, sendo velado em vida, um corpo que respira e um coração que bate, mas uma cabeça que se fecha sobre si. Seria como um conde de Monte Cristo no Castelo de If, só que incapaz de fuga ou de conversas com os outros. Poderia existir prisão mais terrível?
O colapso do cérebro leva à discussão do que seja vida. Se vida é consciência, poderíamos praticar eutanásia com quem a perdeu? Os médicos podem detectar sinais de atividade cerebral e constatar a morte do cérebro, todavia tudo parece nebuloso quando se trata dele, continente vasto e complexo e parcialmente conhecido.
A vida é o corpo em si ou a atividade cerebral ou a combinação de ambos? A vida pertence ao indivíduo e ele pode estabelecer, em determinadas condições de prejuízo físico, pedir pelo fim dela? Seria humano atender ou seria humano recusar tal pedido? A vida seria, como querem muitos, um valor superior ao conforto ou à própria liberdade individual? São decisões complexas.
Filósofos estoicos chegaram a dizer que eu posso determinar o fim da minha vida. “Sê teu próprio libertador” era mote corrente. Gente marcada pelo estoicismo cometeu suicídio: Cícero e Sêneca.
Posso definir a atividade biológica como eixo da vida. Enquanto há vida, há esperança, diz axioma tradicional. Há muitos motivos bons para viver. Acima de tudo, existe a vontade de viver como algo definidor da luta. Mesmo um religioso, um santo, um papa como João Paulo II, após uma luta intensa contra a debilidade crescente e a doença de Parkinson, decidiu, segundo informou o próprio Vaticano, não ir novamente ao hospital para novos e invasivos tratamentos já sabidos como paliativos e inúteis. São João Paulo II jamais se mataria, no entanto decidiu não prolongar a vida de forma artificial por mais tempo.
Já vi todos os tipos de reação ao fim. Pessoas tranquilas, ansiosas, apavoradas e outras resignadas. A todos, eu analisei (a partir) do meu estado atual, em plena consciência cerebral e corpo sem danos estruturais. Que podemos entender do fim enquanto não for o nosso? Como julgar alguém devastado pela dor, incomodado pela dependência ou limitado pela memória?
Eu não tenho resposta para isso, pois seria como especular como eu vou me sentir após minha primeira viagem para fora da Via Láctea. Preciso aguardar pelo momento certo para estabelecer algo. Todavia, há coisas que eu sei. A dor da perda da consciência ou o drama do colapso físico pertence a uma subjetividade muito, mas muito, pessoal. A mim, cabe apenas algo: ajudar. A limitação de outro mais velho ou mais doente é um desafio complexo. Não consigo saber com certeza quais os padrões que determinam a vida. Não tenho conhecimento médico. Sei que a vida digna passa pela minha dedicação a quem sofre uma limitação. O direito ou a negativa de continuar vivendo é um tema complexo e cada um pode ter sua opinião. Essa opinião, com certeza, pode mudar na undécima hora.
Há algo que não depende de opinião sobre amparar quem está perto da morte: nossa responsabilidade. Se você se recusa, já cometeu suicídio moral. O corpo pode estar vivo, entretanto houve um Alzheimer ético. É terrível perder a liberdade com um declínio físico ou cerebral. É ainda mais terrível perder a dignidade humana com o pleno funcionamento do corpo e da consciência. Para a demência, espero, um dia encontrem cura. Para a indiferença, nunca existirá. Apenas me ocorre a sentença inexorável de uma vingança: você, um dia, estará lá. Hoje é aniversário da tia Dulce. Bom domingo para todos nós.