domingo, 25 de outubro de 2015

O desafiante - O giro do PSDB no espectro político e o deslocamento do PT, Ilustríssima 13 set 2015


Celso Barros – Folha de S. Paulo / Ilustríssima

RESUMO Em réplica a artigo de Sergio Fausto ("Ilustríssima", 2/8) autor sustenta que PSDB foi empurrado para longe de sua origem de centro-esquerda. O partido tucano tornou-se o grande civilizador da direita e deu duas vitórias a uma candidatura liberal, sem candidato maluco, fraude ou golpe, o que era inédito no país.

NO COMEÇO DOS anos 90, discutiam dois célebres intelectuais, um tucano, um petista. O tucano perguntou: "Afinal, quando o PT vai admitir que é social-democrata?"; o petista respondeu: "E o PSDB, quando vai admitir que não é?". A tensão entre a social-democracia que não ousa dizer seu nome e a social-democracia que só ousa dizer seu nome é uma das marcas do debate político brasileiro moderno e voltou ao centro do palco com a crise atual do PT.

O diretor do Instituto Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, publicou em 2 de agosto último, um importante texto, neste mesmo caderno, propondo que o PSDB volte às suas origens de centro-esquerda e ocupe o espaço que o PT está deixando aberto.

Ao mesmo tempo, lideranças mais radicais entre os manifestantes pró-impeachment declaram que o PSDB não é radical o suficiente na oposição ao PT (talvez por sua origem na esquerda).

O próprio Sergio Fausto percebe a tensão: pode haver dificuldades na "sobreposição de expectativas" de maior contundência oposicionista e maior coesão doutrinária.

Não é muito fácil para o PSDB executar o movimento proposto por Fausto. Mesmo supondo que o PT perca completa e permanentemente a centro-esquerda, ela não se converteria em um espaço vazio: ainda estariam lá movimentos sociais, intelectuais, além de um eleitorado que tem certas convicções formadas.

O processo de conversão desses setores ao PSDB implicaria uma longa reconciliação, durante a qual, podemos supor, o PSDB perderia os eleitores que votam nos tucanos por antiesquerdismo. Deve ser difícil para um tucano histórico ver a centro-esquerda em disputa e não poder correr para lá, mas fazê-lo traria riscos consideráveis. Não sendo tucano e não estando disposto a fazer apostas com as fichas dos outros, não me cabe dizer se o PSDB deve ou não seguir o conselho de Sergio Fausto.

De qualquer modo, a estratégia atual do partido é bem diferente. Parece ser uma reafirmação de sua liderança sobre o conjunto da oposição, que se radicalizou desde o ano passado. Cada lado acha que a radicalização começou com o outro, e imagino que alguém tenha razão, mas a polarização política aumentou no mundo todo: nos Estados Unidos, na Europa, na Turquia, para não falar da Venezuela.

É razoável supor que parte da polarização, em todos esses lugares, seja ansiedade pelo fim do ciclo de prosperidade em 2008. As lideranças políticas precisam lidar com a radicalização da base, pelos desafiantes mais entusiasmados em seu próprio campo –e isso nem sempre é fácil.

Há nisso também tensões entre a elite política da oposição e sua recém-descoberta base militante. A falta de traquejo dos tucanos com os manifestantes de março, por vezes sendo arrastados por eles, por vezes tentando ignorá-los, reflete a falta de experiência de rua do partido (que é o outro lado de seu discurso acadêmico afinado). Lembra um pouco a falta de traquejo do PT com seus aliados parlamentares.

Como tudo na atual crise política, a nova direita militante pode ser um grande passo no amadurecimento da democracia brasileira, se todos concordarmos em preservar a democracia brasileira. Mas no curto prazo gera ruído.

O que não se discute é que a crise do PT é mesmo uma boa hora para discutir o PSDB.

Antes de 1994, a direita brasileira nunca tinha tido um partido vindo da esquerda no seu comando (isso não é comum em lugar nenhum). Como isso aconteceu? Ainda faz sentido que seja assim? O que a crise do PT representa para o futuro da direita brasileira?

ALIADO Em sua origem, o PSDB foi um partido social-democrata. Seu aliado mais frequente em eleições majoritárias, antes de 1994, era o PDT de Leonel Brizola, e houve quem propusesse a fusão dos dois partidos (o que, inclusive, facilitaria a entrada dos tucanos na Internacional Socialista).

Fernando Henrique Cardoso foi o autor do projeto de imposto sobre grandes fortunas. Os tucanos foram fundamentais na confecção da Constituição social-democrata de 1988. O célebre discurso de Mario Covas pedindo um "choque de capitalismo" durante a campanha de 1989 foi, em parte, uma tentativa de superar a desconfiança dos empresários de que fosse, no fundo, um esquerdista radical (e o PSDB, afinal, apoiou Lula no segundo turno). Qualquer história da esquerda brasileira que não inclua Covas e FHC, Serra e Bresser, será sempre incompleta.

Mas os próprios fundadores do PSDB já sabiam que a escolha do nome "social-democrata" podia cobrar seu preço. O ex-ministro Bresser-Pereira contou, em entrevista de 2011 ao jornal "Valor Econômico", que Franco Montoro, democrata-cristão histórico, teve um momento profético durante os debates iniciais dos tucanos: dizia que, se o PT, com sua base sindical, virasse governo e moderasse seu discurso, seria a social-democracia brasileira e empurraria o PSDB para a direita. Em uma palestra de 1991 na Fiesp, Leôncio Martins Rodrigues dizia que o PSDB e o PDT não eram social-democratas, pois lhes faltava a base sindical. E completava dizendo que "só quem pode ser social-democrata é o PT, que não quer ser".

Como bem notou Sergio Fausto em seu artigo, o PSDB, como partido social-democrata, teve uma vida muito difícil. Na palestra na Fiesp citada acima, Leôncio Martins Rodrigues dizia que o PSDB foi o grande derrotado da eleição de 1990. Antes de 1994, só elegeu um governador, Ciro Gomes. Até o Plano Real, era difícil apostar em outro futuro para o PSDB que não o de aliado do PT ao centro ou candidato à fusão com o PDT.

BANCADA Entretanto, em 1994, o PFL fez o que os modelos de ciência política esperavam que fizesse e se deslocou para o centro, abdicando da cabeça de chapa para o PSDB. Só então os tucanos passaram a ter uma bancada parlamentar expressiva e estabeleceram sua base nos governos estaduais do Sudeste. O PFL foi mais consistentemente pró-governo nos anos 1990 do que o PSDB. O PSDB é um partido mais importante do que, digamos, o PDT ou o PSB, porque fez a aliança com o PFL em 1994.

Desde então, o PSDB chefia o bloco anti-PT. Dado que o PT também fez o que a ciência política esperava e se moveu para o centro, a profecia de Montoro se cumpriu, e o PSDB foi empurrado para a direita.

O PSDB é um experimento interessante de ciência política: sua posição dentro do sistema prevaleceu sobre a identidade de seus fundadores. O PSDB vota mais à direita no Congresso Nacional hoje em dia do que votava antes de 1994, suas alianças frequentes são bem mais conservadoras.

Não conheço estudos sobre recrutamento partidário tucano, mas os quadros jovens de destaque do PSDB (como os "cabeças pretas") não parecem estar lendo nada muito à esquerda. É provável que a maioria dos filiados ao PSDB nos últimos dez anos tenha sido atraída pelo antipetismo dos tucanos. É difícil citar um membro de destaque do PSDB com menos de 50 anos que tenha um perfil ideológico semelhante, digamos, ao de Mario Covas.

O deslocamento do PSDB à direita pareceu menos brusco pela comparação com o que estava acontecendo na social-democracia dos países desenvolvidos nos anos 1990. Foram os anos da Terceira Via de Tony Blair, que deu aos trabalhistas sua maior sequência de vitórias na história; da forte virada para o centro do antigo Partido Comunista Italiano; e de Bill Clinton na Casa Branca.

Essa leva de partidos de esquerda foi marcada pela adesão a parte do programa liberal, bem como pelo distanciamento cauteloso de suas bases sindicais. A participação de FHC na Conferência de Florença sobre Governança Progressista, ao lado de Blair, Clinton, Schroeder e D'Alema, reforçou a ideia de que o PSDB não tinha deixado de ser de esquerda, a esquerda é que tinha mudado.

Isso sempre foi uma miragem. Antes de Blair veio Thatcher, que já partia de um ponto completamente diferente daquele em que se encontrava o Brasil em 1994.

Uma coisa é se distanciar do estatismo dos "30 gloriosos" europeus com seu Estado de bem-estar social; outra coisa é se distanciar do estatismo conservador brasileiro, que, em que pesem suas realizações modernizadoras, entregou um país ainda mais desigual do que o que recebeu em 1964.

A liberalização no Brasil foi feita sem o ciclo igualitário que a precedeu na Europa. O PSDB foi, então, Thatcher e Blair ao mesmo tempo. Não é fácil dizer que a média entre Blair e Thatcher resulte em algo muito à esquerda.

Além disso, o movimento da social-democracia nos anos 1990 provavelmente foi excepcional, como foi excepcional a aproximação da direita europeia com bandeiras esquerdistas no pós-Guerra. Durante o Novo Trabalhismo britânico, houve um descolamento entre a renda dos muito, muito ricos e a renda do resto da população.

Após a crise de 2008, cresceram as dúvidas sobre o quanto desses ganhos realmente era recompensa por inovação e empreendedorismo. Se a virada do PSDB nos anos 1990 foi, no essencial, uma viagem na companhia da social-democracia europeia, vale testar se algum movimento semelhante ocorreu em sentido inverso nos últimos anos. O PSDB leu seu Giddens, mas está lendo seu Piketty?

É provável que o fator que faz a social-democracia voltar à centro-esquerda sempre que vai muito para a direita seja a base sindical. Faz diferença.

O paralelismo com a Terceira Via foi, portanto, só um anestésico para a virada do PSDB à direita. O que é preciso dizer, por outro lado, é que foi muito bom para o Brasil que o PSDB virasse à direita.

O PSDB foi o grande civilizador da direita brasileira. Em primeiro lugar, foi o lar ideal para os economistas liberais, pois no Brasil o estatismo foi de direita. A ditadura, como se sabe, começou economicamente liberal, mas, após adquirir controle completo do Estado, fez o que a ciência política esperava que fizesse e tratou de colocar uma parte maior da riqueza nacional sob controle estatal (isto é, sob o próprio controle).

Os políticos da direita tradicional brasileira que apoiaram a privatização nos anos 90 provavelmente pediam cargos para apadrinhados em estatais nos anos 70. Sob esse ponto de vista, parecem-se mais com os ex-comunistas russos do que com os liberais anglo-saxões.

O PSDB deu aos economistas liberais dos anos 1990 a chance de se apoiarem em algo um pouco mais parecido com Walesa ou Havel, um pouco menos parecido com Iéltsin. Uma privatização feita só com "insiders" do antigo regime provavelmente teria tido resultados piores.

É preciso uma grande boa vontade para não ver que há corrupção no PSDB, mas tentem imaginar o que seria a luta contra a corrupção dos governos de esquerda se ela tivesse que ser levada adiante só pela direita tradicional brasileira. Setores conservadores da imprensa tentaram lançar um pefelista, Demóstenes Torres, como campeão da luta pela ética. Não chegou a ser um sucesso. Os mesmos setores agora se aproximam de Eduardo Cunha.

E, finalmente, o PSDB deu à direita brasileira a única vitória eleitoral esmagadora, programaticamente clara e baseada em resultados de sua história. Os eleitos à direita anteriores, Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello, não conseguiram terminar um mandato; FHC emendou dois. Houve duas vitórias em primeiro turno por uma candidatura liberal, sem candidato maluco, sem fraude e sem golpe, o que era inédito na história brasileira. O PSDB foi o Juscelino que a UDN nunca teve.

Essa vitória foi possível graças a um sociólogo meio comuna aposentado pelo regime de 64, cuja grande ideia na vida foi implementar um plano econômico que jamais teria sido concebido se a Operação Bandeirantes tivesse, no linguajar de alguns manifestantes atuais, "terminado o serviço" e executado Pérsio Arida, preso, torturado e quase morto aos 16 anos por pendurar uma faixa sobre um túnel. Não a fazem como querem, já dizia um autor que FHC costumava discutir com os amigos.

REGIME É preciso perguntar: por que a direita brasileira precisou terceirizar a Presidência para um partido da esquerda? A explicação mais comum é o regime militar.

O regime militar foi muito popular por vários anos, mas entregou o país quebrado. Os políticos envolvidos com o regime militar não teriam legitimidade para disputar a Presidência. De fato, em 1989 a direita precisou lançar um candidato muito jovem, com pouco envolvimento com os governos militares e que, aliás, na campanha se dizia social-democrata.

Há outras formas pelas quais o regime militar pode ter prejudicado a direita brasileira no longo prazo: por exemplo, qualquer que seja sua opinião sobre os militares, não é provável que eles tenham se empenhado muito em promover civis com potencial de lhes tirar a Presidência. Vinte anos de promoção política pelo critério "aceitar ter pouca importância e concordar com o Poder Executivo" não devem ter selecionado políticos de direita nascidos para liderar –e devem ter atrofiado o talento dos que o tinham.

Outra interpretação invoca o grau extremo da desigualdade brasileira, que torna difícil a aplicação de um programa puramente liberal. Jorge Bornhausen já descreveu o PFL como centrista justamente porque o Brasil seria pobre demais para aderir ao liberalismo econômico radical.

De fato, boa parte do "conservadorismo popular" brasileiro é comportamental, não econômico.

O "modelo do eleitor mediano" também sugere (entre outras coisas) que, em países muito desiguais, partidos que defendam maior redistribuição de renda terão chances maiores de vencer eleições. E os economistas Daron Acemoglu, Georgy Egorov e Konstantin Sonin já sugeriram que, em países em que a população suspeita que os políticos vão "se vender" para a elite, candidatos têm incentivos para se apresentarem como esquerdistas.

O Brasil é muito pobre, muito desigual e a população tem bons motivos para suspeitar que os políticos vão se vender para o poder econômico.

Mas talvez essas condições tenham começado a mudar. O governo do PT começou a reduzir a desigualdade, e é difícil que os governos futuros possam ignorar essa tarefa completamente. A atuação do Judiciário e da Polícia Federal no combate à corrupção pode enfraquecer a suspeita de que os políticos vão sempre se vender às elites (no médio prazo; no curto prazo deve até fortalecê-la).

Tudo isso está no começo, mas talvez as condições que dificultaram à direita "ousar dizer seu nome" estejam perdendo força. Se a tendência continuar, os social- democratas do PSDB podem se tornar desnecessários à direita brasileira, mesmo supondo que o partido retenha sua hegemonia na oposição (e seu nome). Algo como o PFL renasceria, talvez dentro do PSDB. Isso não é uma denúncia (é incrível que seja necessário dizê-lo): o Brasil, como toda democracia moderna, precisa de uma direita viável.

É mais difícil montar uma direita democrática do que uma esquerda democrática em um país desigual como o Brasil (direita não democrática é até fácil demais).Não será possível vender ao eleitorado um programa liberal para o crescimento se os frutos do crescimento forem divididos como a riqueza atual é dividida.

Cedo ou tarde, a direita brasileira terá de entregar seu próprio programa de redução da desigualdade e precisará impor sacrifícios à sua base (como o PT impõe à dele o tempo todo).

O eleitorado brasileiro fez bem em forçar a direita brasileira a se aliar aos social-democratas.

PODER É claro, todo o raciocínio exposto acima supõe que o plano do PSDB seja voltar ao poder ganhando eleições, e que seus movimentos recentes sejam só tentativas de enfraquecer o governo para 2018. Nesse caso cabe discutir, como fizemos acima, a desigualdade brasileira, Tony Blair e a Conferência de Florença, Fernando Henrique Cardoso e Armínio Fraga.

Se, contudo, o plano for chegar ao poder por articulação pelo alto, por impeachment ou coisa parecida (nos moldes das votações "até virar" de Eduardo Cunha), a conversa é outra.

Trata-se, então, de discutir os termos de uma aliança com os políticos que se venderam ao PT nos últimos 12 anos. Nesse caso, a liberalização econômica seria feita não pela conquista do apoio consciente dos mais pobres (como em 1994), mas por sua desmobilização após a crise da esquerda. Não sei dizer se a reconstrução do velho "centrão" custaria mais ou menos ao erário do que um programa de redistribuição de renda.

Nesse último cenário, após o fracasso em ser uma versão mais sofisticada do PT, e um extraordinário sucesso em ser uma versão mais sofisticada do PFL, o PSDB voltaria às origens e lideraria o que, em 1988, chamou de "PMDB Arenizado". Em algum lugar, Orestes Quércia sorri.

‘Intolerância é a antessala da violência e a violência é a negação da política’, Sonia Racy , OESP


SONIA RACY
16 março 2015 | 01:02
Foto: Iara Morselli/Estadão
Para o professor da Unicamp, o clima pesado das manifestações e a invasão do debate político peloradicalismodas redes sociais revelam queo atualmodelo“estáesgotado”
Anarquista nos áureos tempos, hoje um dedicado professor do Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, o professor Francisco Foot Hardman olha os vários Brasis à sua volta, a bater panelas e agitar as ruas, de um jeito impaciente e preocupado. “A intolerância é a antessala da violência e a violência é a nega- ção da política”, adverte, sobre a alta temperatura a que chegaram as recentes manifestações de rua por todo o País.
Preocupa-o “a mais absoluta superficialidade e irracionalidade” do que se diz nas redes sociais – e também o peso que elas adquiriram, ao injetar no debate político altas doses de radicalismo e a incivilidade. Livre-pensador 24 horas por dia, formado na USP e há quase três décadas na Unicamp, Hardman – que escreveu, entre outros, os livros Nem Pátria nem Patrão e Trem Fantasma – passou a semana envolvido com a Mostra Internacional de Teatro, em São Paulo, mas sem deixar de acompanhar o tenso momento vivido pelo País. Nesta entrevista, ele afirma: o atual modelo político, montado a partir do fim da ditadura, “está esgotado e a saída talvez seja uma constituinte”. E o ano que vem por aí “não vai ser fácil, não”.
A seguir, os principais trechos de sua entrevista.
Que país é este, onde ficou tão difícil dialogar e as manifestações de rua viraram palco para ódio e grosserias?
É um país desigual e injusto, com uma enorme diversidade cultural. Vivemos um momento em que várias crises se cruzam – a estagnação econômica, a paralisia da política, a urgência de medidas na questão energética, na hídrica. Tudo isso aumenta a sensação de imprevisibilidade e de insegurança.
A política deveria ser o espaço para isso ser corrigido, mas não é. Por quê?
Porque persiste uma tradição de violência – além da corrupção – que levou a um descrédito profundo com relação à política institucional. O modelo de organização política montado depois do regime militar é extremamente insatisfatório, precário, frágil, e dá claros sinais de estar esgotado.
As redes sociais parecem estar tomando o lugar dos partidos como espaço para se fazer política. No que isso vai dar?
As novas tecnologias têm um papel central nesse cenário. Elas aceleraram enormemente o ritmo de ação pelas redes e isso está deixando os partidos, tão burocráticos, para trás. Bom exemplo foram as Jornadas de Junho de 2013. Elas trouxeram à cena um tema urgente e essencial, o da mobilidade urbana, questão decisiva para 80% da população das cidades médias e grandes. Mas essas demandas esbarraram no imobilismo dos poderes tradicionais – Congresso, Estados, municípios. Donde o recado daquelas Jornadas, me parece, foi o da urgência de uma reforma política. Mas não essa reforma de que se fala por aí. Uma mais profunda, no sistema partidário, na representação, na forma de financiamento de campanhas. Projeto que, a depender do Poder Legislativo, não avançará nunca, pois sabemos que no Congresso predominarão sempre os interesses corporativos.
Mas o dinamismo das redes, por serem mais imediatistas, mais concretas e plurais, não deveria ajudar a tornar o debate político mais realista?
As redes oferecem facilidade, velocidade, mas tudo acompanhado da mais absoluta superficialidade, irracionalidade e completa dispersão das vontades no processo. E esse fenô- meno é do mundo inteiro, não só do Brasil. Prova disso foi a Primavera Árabe, que despertou sonhos mas não tinha projeto. Acabou redundando em nova ditadura militar no Egito. Em Brasília, nas mobilizações de 2013, houve quase uma ocupação do Congresso… Foram repentes, mais nada.
O anonimato das redes abriu espaço para ataques e julgamentos sumários e isso mais cria problemas do que resolve, não?
Esse ambiente virtual produz um rebaixamento acentuado da educação pública – e este, por sua vez, provoca um afastamento da política. Essa facilidade de se apresentar e dizer algo é vendida como valor democrático mas, sabidamente, não tem nada a ver com democracia.
Também na política é mais fácil destruir do que construir.
Sim. O grande problema é que tais manifestações não conduzem a fóruns coletivos onde pautas e ideias predominem. No mais das vezes, elas vão dar num vazio completo. Vazio do ponto de vista da organização social e da construção teórica, um vazio conceitual.
Quer dizer que elas só fazem parte do serviço, é isso?
Uma coisa é trazer milhares de estudantes para a rua, outra coisa é conseguir convencer trabalhadores e operários a participar. Esses movimentos se apegam a uma ideia fixa – que é limitada – em sua recusa a participar do sistema político como um todo. Disso estamos vendo sinais agora.
Quais sinais?
Em 2013, o Movimento Passe Livre tocou numa questão central do Brasil contemporâneo, a da mobilidade urbana. Quando colocam o tema “por uma vida sem catracas”, falam de algo relevante. Mas a insistência nesse ponto, sem a devida articulação com algum plano de transformação da vida política brasileira, provocou um relativo isolamento.
Nas disputas partidárias, um lado chama de ‘fascistas’ todos os que discordam dele e outro fala em impeachment da presidente Dilma ou de ‘fazê-la sangrar’. Há institucional?
A relação entre o baixo nível das redes sociais e essa violência e intolerância que invadiu a política A intolerância é a antessala da violência. E a violência é a negação da política. Esse é, no momento, um dos nossos dramas. Vivemos a negação da chamada pólis, da cidade como fórum aberto de ideias que se embatem e, pelo diálogo, produzem os consensos. É verdade que, mesmo nos modelos clássicos, essa condição da polis só se viabilizava num circuito muito restrito de cidadãos. Para cada bom cidadão grego havia milhares de escravos excluídos do sistema.
Quanto do atual mal-estar da sociedade decorre das desigualdades históricas, quanto se deve ao que o senhor define como “esgotamento do modelo” e quanto é responsabilidade direta, hoje, da presidente Dilma Rousseff?
Creio que a chamada “Nova República”, iniciada em 1985, esgotou seu ciclo histórico-político e que essa é a razão principal dos impasses atuais. Discordo da visão segundo a qual Dilma é a principal responsável pelas mazelas da conjuntura. É verdade que seu estilo muitas vezes “autista” – que talvez seja marca de um aprendizado político feito na clandestinidade da ditadura militar – não ajuda em nada e contribui para agravar a crise polí- tica. Mas sem uma reforma radical, que culmine num processo constituinte em que as for- ças da sociedade civil e de movimentos sociais participem ativamente, não creio em mudanças efetivas nem em superação da instabilidade crônica do atual sistema de poder. E isso nas três esferas de governo.
Existe hoje na sociedade uma imensa maioria que, pelas razões já mencionadas, se sente excluída do debate. É possível mudar isso, sem se dividir o mundo em “chapas brancas” e “fascistas”?
Quando os métodos de dialogo se tornam impositivos e se valem da força, da ameaça, da desqualificação, estamos no terreno autoritário – que pode, sim, contaminar os discursos de todos os lados. E por trás, existe esse enorme e decisivo desafio, a crise da representação. Que produz essa multidão dos sem mandato, sem cidadania, sem espaço, grande massa do povo brasileiro. O povo não se sente representado pelas dezenas de partidos, os milhares de candidatos.
Pode-se dizer que são partes do mesmo problema a aparição dos black blocs quebrando de tudo no final das manifestações e os conflitos entre torcidas organizadas de futebol– a ponto de se apelar para “torcida única” em clássicos?
Essas realidades são o retrato de uma luta política atravessada por manifestações irracionais. As torcidas organizadas do futebol não são diferentes. Mas há uma enorme faixa da população que não partilha desses métodos.
O clima talvez melhorasse se os dois principais partidos, PT e PSDB, pudessem estabelecer um diálogo sobre os grandes desafios do País. O senhor vê chances de superação desse impasse? E o PMDB, hoje fortalecido, pode ter papel mais decisivo nessa pacificação?
Não guardo mais nenhuma ilusão sobre o atual sistema partidário institucional, ele está todo “bichado”. O PT converteu-se em uma máquina burocrática, financeira e eleitoral poderosa. Há mais de uma década as lideranças que criticavam seu afastamento crescente dos movimentos sociais foram marginalizadas ou tiveram que sair. Ou ainda o farão. O PSDB é menos um partido e mais um clube de caciques e luminares, imaginar que em sua sigla inscrevia-se a proposta de uma “social-democracia brasileira” parece piada de mau gosto. E o PMDB, cada vez mais, revela-se o que nunca deixou de ser: um entulho do regime autoritário, fisiológico e corrompido até a medula. Triste que o governo Dilma tenha se tornado, em razão de suas escolhas estratégicas, refém dos apetites dessa sigla.
A crise de hoje tem alguma ligação com os antigos “Brasis” descritos por Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, ou Sergio Buarque, em Raízes do Brasil?
Essa pergunta me traz à mente uma visão final de Raimundo Faoro em Os Donos do Poder, onde ele fala de “uma civilização tolhida no seu crescimento, como se tivesse sido atacada de paralisia infantil”. Ele fazia uma imagem com Jesus e o “deitar vinho novo em odres velhos” para dizer que “os velhos odres devem ser abandonados”. E definia o País como “uma monstruosidade social, engendrada por instituições anacrônicas, comandadas pelo estamento burocrático”. Não é uma marca só do Brasil. As redes sociais não fazem o que fazem só em nosso País. Mas aqui formam um caldo que cria toda essa urgência.
Como imagina que o País vai atravessar 2015?
Vai viver mal. Percebe-se que há vários impasses. Para falar do meu lado, temos uma clara crise financeira na universidade pública paulista – produto direto do momento, pois se a economia para, os tributos diminuem, faltam os recursos. Some-se a situação dificílima do emprego. Acho que a resposta – de novo – tem que ser política. Mas não essa da intolerância, da gritaria. Política no sentido de articular as forças em busca de mudanças reais.
Por falar em universidades, acha que os intelectuais, como classe, estão desempenhando o papel que deles se espera no atual momento?
Esse cenário todo é completado, não podemos negar, com a falha deixada pela ausência de um papel mais positivo dos intelectuais. Sabemos que as universidades enfrentam uma dura crise, mas isso não pode nos impedir de admitir que o papel social da universidade pública no Brasil de hoje está muito inferior ao que deveria ser. Não é só questão financeira, não. Também a responsabilidade das pessoas que lá estão. Vou me apropriar, aqui, do nome de um grupo de teatro colombiano novo, que participa da MIT, a Mostra Internacional de Teatro. Ele se chama La Maldita Vanidad (“A Maldita Vaidade”). Esta é uma das marcas mais deletérias do perfil acadêmico dominante do Brasil, que se tornou individualista, carreirista, e muitas vezes completamente indiferente ao País e à sociedade que o sustenta. / GABRIEL MANZANO

Papparazi de nós mesmos, FSP


O que "selfies" revelam sobre o mundo atual
EMILIO LEZAMATRADUÇÃO FRANCESCA ANGIOLILLORESUMO Mais que mera versão atualizada do consagrado gênero do autorretrato, os "selfies" se impõem como signo da revolução digital. Ironicamente, em um mundo marcado pela alta tecnologia, o homem contemporâneo tem como "gadget" favorito um tosco bastão, cujo benefício último é dispensar a interação com estranhos.
Mesmo os pouco observadores devem ter notado um novo aparelho na temporada de férias. Tecnologia de ponta? Só no sentido mais estritamente literal.
Neste ano, o "pau de selfie", monopé que permite tirar autorretratos, conquistou o mercado dos viajantes. Não deixará de surpreender que em pleno 2015 o homem tenha redescoberto a utilidade tecnológica de um bastão.
Na pré-história, o homem vagou pelos bosques apoiando-se nele; milhares de anos depois, a moda volta, de forma distorcida: o instrumento que servia para conectar o homem com o que estava sob seus pés –a terra– e o apoiava, literalmente, para abrir passo pelo mundo se converteu em uma ligação com o mundo superior. Se eu não me vejo, como sei que existo? Esse novo cajado nos permite uma perspectiva aérea da existência.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk explica que aquilo que nós entendemos por tecnologia é uma tentativa de substituir os sistemas imunológicos implícitos por sistemas imunológicos explícitos.
Em nossa época, os sistemas de defesa que criamos procuram nos isolar de um exterior que se nega a ceder à tendência individualista da sociedade. Por isso andamos de um lugar a outro sem renunciar nunca a nosso mundo: nos transformamos em uma sociedade de caranguejos-eremitas, carregando no lombo nossas casas. Sentados entre centenas de passageiros, nos protegemos, com nossos fones de ouvidos, celulares e vídeos, do encontro com o exterior. Agora, o "pau de selfie" nos permite tirar fotos sem a incômoda necessidade de interagir com estranhos. Nos transformamos em seres autossuficientes e, em decorrência disso, necessariamente antissociais.
A máxima ironia do mundo globalizado é a crescente insularidade do indivíduo. Como o exterior é impessoal, nos embrenhamos no interior; como a comunidade nos debilita, a individualidade se torna preponderante; é assim que a casa familiar dá lugar ao apartamento individual –e a autogamia moderna surge. O grande balão da globalização explodiu em milhares de bolhas comprimidas, que voam juntas, sem, no entanto, se roçarem.
O fenômeno do "selfie" responde a essa condição insular e por isso se arraigou como a manifestação estética da revolução digital. O isolamento do indivíduo é tal que, liberto do voyeurismo, teve de conceber um autovoyeurismo: nos tornamos paparazzi de nós mesmos. O "selfie" procura esconder nossa natureza isolada e solitária sob o verniz da felicidade e do gozo.
ORIGENS As origens mais remotas do fenômeno, contudo, expõem sua natureza. Em 1524, o pintor italiano Parmigianino (1503-40) se autorretratou com o auxílio de um espelho convexo.
O efeito é alucinante: mais que um autorretrato, a pintura de Parmigianino é uma indagação a um mundo interior atormentado. O olhar do autor é sereno, mas incômodo, mais adequado ao mundo das "hashtags" que ao da pintura renascentista.
Séculos depois, em outubro de 1914, aos verdes 13 anos de idade, a princesa Anastácia da Rússia subiu em uma cadeira em frente a um espelho e fotografou seu reflexo. O resultado causa calafrios: a princesa lembra um fantasma. Ambas as imagens ressaltam a condição solitária do "selfie".
A discussão sobre o significado desse fenômeno tem muitas vertentes. O "selfie" já foi explicado como uma ferramenta de "empoderamento", como vão narcisismo ou como um desesperado grito de ajuda lançado ao vazio da aldeia digital. Outros sugeriram que se trate das três coisas ao mesmo tempo. Um pedido de atenção em um mundo onde a atenção equivale ao poder.
O "selfie", no entanto, tem também um sentido de autoconstrução. Permite ao indivíduo moldar a narrativa de sua vida e, assim, nos transformou em promotores de nossa própria marca. Não se trata simplesmente de que o indivíduo queira ostentar a "perfeição" de sua vida, mas de ele mesmo querer acreditar em sua invenção. O "selfie" permite adequar a realidade a suas próprias expectativas.
Em um mundo altamente tecnológico, o "pau de selfie" se destaca pelo aspecto tosco. Os que esperavam carros voadores e lentes multifuncionais se viram decepcionados pela realidade: o invento mais popular do ano é um bastão.
Atrás dessa aparente simplicidade, porém, se esconde uma revelação profunda sobre o mundo contemporâneo. Como o velho cajado que amparou nossos antepassados, o "pau de selfie" nos oferece segurança diante de um mundo perigoso. Não é só a nossa proteção no isolamento mas uma resposta a essa angústia do ser humano contemporâneo –a de constatar sua própria existência.