domingo, 25 de maio de 2014

'Ser reitor é coisa que pode subir à cabeça'


À frente da USP entre 1986 e 1990, Goldemberg lamenta não ter fixado porcentuais no ato que criou repasse via ICMS

25 de maio de 2014 | 2h 03

O Estado de S.Paulo
Nomeado para a comissão dos festejos dos 80 anos da USP, o físico e ex-reitor José Goldemberg se debruça sobre vasta documentação para rever a história da universidade. Sente falta da "visão de estadista" que presidiu a fundação da instituição, em 1934. E lamenta não ter incluído certos parâmetros no decreto do ex-governador Orestes Quércia, dos anos 80, que criou o financiamento das universidades públicas paulistas via recursos do ICMS.
Podia prever crise tão aguda nos 80 anos da USP?
A USP é fruto de uma visão de estadista. O que pensavam seus fundadores, em 1934? Que havia ali uma oportunidade de modernizar o País, que começava a se industrializar. Regimes autoritários estavam em ascensão na Europa, portanto, seria possível atrair boas cabeças para cá. Lendo o decreto de fundação, vê-se que cogitaram criar um fundo para mantê-la. Como na Universidade Harvard, que dispõe de um fundo de US$ 40 bilhões, incluindo doações. O rendimento desse dinheiro cobre o orçamento anual e Harvard não depende de governo. Veja como os criadores da USP pensaram algo grande, lá atrás.
Algo que não ocorreu.
Porque o dinheiro saía do cofre do governo, como acontece hoje com as universidades federais, que têm autonomia didática, administrativa, mas não financeira. No caso da USP, foi assim por décadas. Com um governador mais sensível, a dotação aumentava. Menos sensível, diminuía. Alternamos anos de vacas magras e anos de vacas gordas.
E como foi a negociação para o financiamento público por meio do ICMS, no fim dos anos 1980?
Quando fui reitor da USP, o Paulo Renato Souza era reitor da Unicamp e o Jorge Nagle, da Unesp. Tínhamos alguma visibilidade. Percebemos o quão desgastante seria continuar pedindo dinheiro ao governo paulista: todo ano tinha greve, era preciso voltar ao Bandeirantes para negociar e a autonomia universitária parecia ficção. Levamos uma alternativa ao (Orestes) Quércia, que nem era uma pessoa ilustrada, além de achar universidade uma complicação. Dissemos: "Por que você não nos dá uma parcela fixa do ICMS? Viveremos com isso e não voltamos mais aqui". Ele aceitou. Não queria barulho na frente do Palácio. Tomou por base o orçamento dos três anos anteriores, calculou o correspondente em termos de arrecadação do ICMS e fixou a fração de repasse. Aquilo foi como chegar ao filho que fez 18 anos dizendo: "Aqui está a mesada, agora é com você". Atestado de maioridade que levou a USP a se transformar numa das grandes universidades do mundo.
Por que atrela esse crescimento ao modelo de financiamento?
Porque demandou comportamento adulto da instituição. A partir de 1988, aprendemos a viver dentro de uma realidade, estabelecendo limites, incentivando carreiras, buscando criar meritocracia. Vimos que não seria correto gastar mais de 80% do orçamento com pessoal, reservando 20% para manutenção e pesquisa. Defendi esses porcentuais com mão de ferro. Mas não os introduzi no decreto e hoje me arrependo.
Como assim?
Tem a ver com a situação atual, em que só com folha de pagamento a USP gasta quase 106% do orçamento. Se tivéssemos estipulado aqueles porcentuais no decreto, não ocorreria. Houve estouros no passado. A Unesp, que é a estadual mais nova, passou por períodos em que gastou 98%, 99% com pessoal. A Unicamp gastava menos e a USP vinha se mantendo nos 80%. Mas, nesses últimos quatro anos, o reitor (João Grandino) Rodas acabou sendo generoso com o pessoal. É complicado, pois o que se dá ao pessoal não se tira mais.
A gestão Rodas tem sido apontada como desencadeadora da crise. Mas reitor não age sozinho. Há um conselho acima dele. Ninguém verificou as contas?
Essa crise mostra a falta de mecanismos de controle na universidade... Dias atrás, ouvi do novo reitor, o prof. (Marco Antonio) Zago, que ele vai propor a criação de uma controladoria, em moldes empresariais. Controladoria que não responderá ao reitor, mas ao Conselho Universitário.
E como estancar a drenagem da reserva financeira da USP?
A USP constituiu uma reserva na casa dos R$ 3 bilhões, sobras dos anos bons de arrecadação. Há recursos de doações, mas pouca coisa. O que aconteceu recentemente? O orçamento vinha sendo fiscalizado pelos órgãos da universidade, porém, ao que tudo indica, as reservas, não. Hoje vemos muitas obras nos câmpus da capital e do interior. Ótimo, desde que haja fundos. E que não existam outras prioridades, como criar vagas, equipar laboratórios, fazer intercâmbios. Outra coisa grave: usar a reserva para dar aumento salarial, como querem alguns. Não pode. Deixa de ser reserva!
Como esse financiamento foi estabelecido em decreto, e não em lei, pode ser revogado?
Houve esforços para transformá-lo em lei, mas não aconteceu. Sim, pode haver retrocesso, embora não acredite nisso. Foram 25 anos de experiência positiva, uma conquista.
Por que o Conselho Universitário não tem sido capaz de coibir gastos considerados excessivos?
O Conselho tem ampla representação, muitas atribuições e bastante poder, mas parece ter sido pouco acionado pelo último reitor. Fora isso, nosso sistema foi se constituindo de tal forma que o reitor da USP concentra muito poder. Eu vivi isso. Há uma coisa, uma aura que pode subir à cabeça. /L.G.

A razão da desigualdade, por Moisés Naím - O Estado de S.Paulo (Brasil Corrupto)

Quem é o culpado pelo fato de a desigualdade econômica ter aumentado tanto nos últimos tempos? Para muitos, a resposta é óbvia: os banqueiros. O setor financeiro é o principal responsável pela crise econômica mundial que começou em 2008 e cujas consequências ainda afetam milhões de desempregados e uma classe média que empobreceu, especialmente na Europa e nos EUA. Quem defende esta ideia destaca que os banqueiros e especuladores financeiros que provocaram a crise não arcaram com nenhum custo, ou melhor, muitos ficaram ainda mais ricos.
Para outros, o aumento da desigualdade tem a ver com os miseráveis salários pagos a trabalhadores em países como China e Índia. O que empurra para baixo a remuneração dos trabalhadores do resto do mundo e causa desemprego, uma vez que as empresas "exportam" postos de trabalho do Ocidente para o Oriente.
No entanto, a questão é mais complicada e profunda, segundo Thomas Piketty, economista francês cujo denso livro Capital no Século 21 transformou-se num surpreendente sucesso mundial. Segundo ele, o capital (que equivale à riqueza e esta, por sua vez, a propriedades imobiliárias, ativos financeiros, etc) aumenta em maior velocidade do que a economia.
Os ganhos produzidos pelo capital (aluguéis de imóveis, rendimentos de investimentos, por exemplo) concentram-se num grupo mais reduzido de pessoas do que a renda fruto do trabalho, que se dispersa por toda a população. Por isso, quando os ganhos de capital aumentam mais rapidamente do que os ganhos do trabalho o resultado é um aumento da desigualdade, já que os donos do capital acumulam uma porcentagem maior da renda. E, como o crescimento da renda produzida pelo trabalho depende muito do crescimento da economia como um todo, se esta não cresce pelo menos no mesmo ritmo que os ganhos de capital a desigualdade econômica se agrava.
Piketty resume a complicada explicação desta maneira: quando "r" é maior que "g", a desigualdade aumenta. O valor "r" é a taxa de remuneração do capital e "g" a taxa de crescimento da economia. Segundo ele, no longo prazo, a economia crescerá entre 1% e 1,5% ao ano, de modo que a desigualdade deverá aumentar. Para evitar que isto ocorra, ele recomenda a criação de um imposto global e progressivo sobre a riqueza, ideia que ele próprio admite ser utópica, pois enfrentará enormes obstáculos políticos como também grandes dificuldades práticas.
A análise e as propostas do autor vêm sendo amplamente debatidas e, como escrevi em minha coluna anterior, o inusitado interesse pelo livro deve-se em grande parte ao fato de que ele foi lançado num momento em que a desigualdade tornou-se uma grande preocupação nos EUA.
Este país tem uma capacidade única para contagiar o resto do mundo com suas angústias. Assim, nações onde a desigualdade é uma doença crônica e não intensamente discutida, agora foram contagiadas com o fenômeno Piketty, o que é uma notícia muito boa. É importante que a complacência com as profundas desigualdades que os afligem desapareça.
É importante, porém, fazer um diagnóstico claro. Na Rússia, Nigéria, Brasil ou China a desigualdade econômica não é porque "r" é maior que "g". Deve-se ao fato de que há demasiados ladrões no governo e no setor privado que podem roubar praticamente sem riscos e com grande impunidade.
Parafraseando o economista, nas sociedades em que "c" é maior do que "h", a desigualdade continuará aumentando. O valor "c" é o número de funcionários públicos e políticos corruptos dispostos a violar as leis para enriquecer e "h" é o número de funcionários e políticos honestos. Pikkety baseia sua análise em dados de cerca de 20 países, a maioria deles com receitas elevadas e os menores índices de corrupção de acordo com a lista de 177 nações da ONG Transparência Internacional. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO
DO CARNEGIE ENDOWMENT, COM SEDE
EM WASHINGTON

Acabou o gás - VINICIUS TORRES FREIRE


FOLHA DE SP - 25/05

Situação de salário, emprego, crédito, gasto público e confiança aponta quase estagnação 


A ECONOMIA BRASILEIRA parece perder o resto do gás que ainda sobrava. Nos últimos seis meses, o combustível dá indícios de se exaurir, seja qual for o tanque que se meça.

A história de que o país "não ia tão bem como se imaginava (faz quatro anos) nem vai tão mal agora" é uma conversa mole que em nada ajuda a pensar o que seja lá esteja acontecendo. O palavrório sobre o país "explodir" ou "bombar" daqui até o ano que vem, mais do que conversa fiada, é bobagem politiqueira muito vulgar.

Nos últimos seis meses, a economia parece estacionar num patamar até alto, pelos padrões de vida históricos e pelo baixo nível de produtividade do país. Mas estaciona. Difícil imaginar de onde possa vir um impulso que faça a carruagem andar, tão cedo.

Os salários ainda davam algum alento. Não mais, pelo menos por ora. O salário médio está mais ou menos na mesma desde novembro do ano passado. A massa salarial, o total dos salários pagos, praticamente estagnou desde o início do ano. Aliás, nos últimos seis meses cresce ao menor ritmo em cerca de 10 anos (dados anualizados).

O crédito fora um aditivo para o consumo, em particular no tombo de crescimento entre 2008 e 2009, devido ao contágio da crise mundial. Mas perde ritmo desde então.

O total de dinheiro emprestado crescia na casa dos 25% ao ano em 2008 (em termos reais), passou para algo em torno de 13% entre 2009 e 2011, para 12% em 2011 e desceu até o ritmo de 8,7% de agora. O impulso restante vinha dos empréstimos dos bancos estatais, alimentados de dinheiro extra pelo governo, que fazia dívida para anabolizar seus bancos. Esse dinheiro também está minguando.

Os aumentos do salário mínimo eram outro impulso que minguou, pois vinculados ao crescimento da economia, inferior a 2% ao ano sob Dilma Rousseff. O aumento da despesa do governo é contido pela arrecadação de impostos menor, em parte devida também ao crescimento menor do PIB.

O governo vem "compensando" o aumento menor da receita com redução de sua poupança, desde 2012. Isto é, fazendo mais dívida, o que no entanto ajuda a chutar para cima a taxa de juros, o que emperra a economia por outro lado.

A falta de gás aparece até nas vendas do comércio, que no primeiro trimestre cresceram só 0,3% sobre o trimestre anterior, o segundo pior resultado desde a queda de vendas no final do ano crítico de 2008.

Os efeitos piores da campanha de aumento da taxa de juros pelo Banco Central ainda estão pela frente, segundo os economistas. Mesmo que sobrevenha uma melhoria da atividade econômica mundial, o efeito sobre a economia doméstica será desprezível. A confiança de empresários e consumidores está no nível de 2009, ano ruim, e caindo.

Massa de salários, número de empregados, crédito, gasto público, confiança: nada disso está em alta ou pelo menos desacelera. Dada a nossa história, o país até que não vai mal, em termos de "economia do povo", no cotidiano. Mas o país não vai mais, ao menos por ora.

Ao final dos anos Dilma, o PIB per capita terá crescido 1% ao ano, pelos dados disponíveis hoje. Um ritmo no qual dobraríamos o nosso padrão de vida médio em 70 anos.