sábado, 3 de maio de 2014

O lixo é um luxo


Como outros bens, as sobras luxuosas da Rua Oscar Freire deveriam ser mais bem distribuídas

26 de abril de 2014 | 16h 33

Joca Reiners Terron - O Estado de S. Paulo
Caso o leitor ainda não tenha percebido, a estrutura do lixo em São Paulo compreende uma narrativa. A história contada com sintaxe tortuosa e repleta de lacunas está composta por lixeiras residenciais e condominiais de todos os formatos, e se estende à decepcionante malha pública de lixeiras de ruas, avenidas e praças, invariavelmente depredadas ou cheias, a ponto de o faceiro pedestre lançar um papel de bala em uma delas e recebê-lo de volta na cara por não haver mais espaço. Faltam nessa cadeia lixeiras de reciclagem, aquelas coloridas, mais raras até que as próprias usinas de reciclagem e a cartela premiada da Mega-Sena. E o que sobra, nos bueiros e meios-fios, em cada esquina, na porta de casa, em todo canto, é lixo. Ou, mediante o ponto de vista, dinheiro.
High trash. Movida a energia solar, lixeira compacta resíduos e avisa quando lotou - Renato S. Cerqueira/Futura Press
Renato S. Cerqueira/Futura Press
High trash. Movida a energia solar, lixeira compacta resíduos e avisa quando lotou
Capítulo especial desse enredo são as três lixeiras de luxo instaladas na semana passada pela Associação dos Lojistas dos Jardins na região da Rua Oscar Freire, epicentro do consumismo. São objetos high tech que, desobedecendo à máxima popular que se refere às coisas tão perfeitas que "só faltam falar", falam de verdade. Ou ao menos escrevem, pois estão dotadas de sistema que avisa sua administradora quando lotam, por meio de mensagem de texto para celular. As lixeiras eletrônicas custam – cada uma – R$ 8.800. Importadas dos EUA, funcionam a energia solar e têm mecanismo de compactação de conteúdo. Com isso, sua capacidade equivale a 12 vezes a de uma lata de lixo comum de iguais proporções. Testei uma delas na Alameda Lorena: joguei um papel de bala em seu interior. Não foi devolvido em minha cara, além de ter sido apetitosamente mastigado pela lata. Só falta arrotar, pensei. De imediato a máquina soltou ruído semelhante a um arroto de satisfação.
Mas o que nos conta a história do lixo na cidade? A resposta, sem dúvida, poderia ser dada pelos catadores que vagam por aí com suas carroças inumanas atreladas ao lombo. Talvez eles nos revelem o que podemos intuir somente em vê-los: não evoluímos um tiquinho desde o Descobrimento. O dia 13 de maio de 1888, ocasião da sanção da Lei Áurea, foi um blefe do calendário. As carroças utilizadas por catadores em São Paulo são cerca de quatro vezes maiores que suas equivalentes argentinas. Produzido ao longo do ano inaugural do primeiro mandato presidencial de Lula (2003–2006), o documentário franco-brasileiro Le Rêve de São Paulo (O sonho de São Paulo), de Jean-Pierre Duret e Andrea Santana, relata a migração de camponeses nordestinos para a metrópole. Alguns deles escapam da indigência graças ao trabalho na incipiente indústria de reciclagem metropolitana.
O filme concede a oportunidade de verificar aquilo que ocorre detrás dos suspeitos tapumes que, sob viadutos e pontilhões, ocultam catadores e suas carroças carregadas. Nesses centros de reciclagem, famílias inteiras operam o milagre urbano da transmutação do lixo em material reciclável. Vencem a miséria e sonham. "Agora sei o que um passarinho sente ao sair da gaiola", diz Carlos, de 36 anos, que arrastou carroça ao longo de nove anos para construir sua casinha em uma favela: "Alegria". No entanto, as condições de trabalho desses catadores – em sua luta cotidiana contra o tráfego assassino, respirando monóxido de carbono, arrastando pesos muitas vezes superiores ao do próprio corpo – permanece menos que humana.
Na Oscar Freire, depois de jogar um palito de picolé na superlixeira, um garoto se assusta com o barulho da compactação. Aos pedestres curiosos, a máquina de compactar lixo parece dotada de poderes sobre-humanos. Mais que isso, parece limpinha e insuspeita, se comparada às carroças dos catadores. Nesse quesito, a narrativa compreendida pelo lixo é sempre assunto sensível. Alguns se lembram do escândalo causado pela lixeira de R$ 1.000 comprada com cartão corporativo pelo então reitor da UnB, Timothy Mulholland, em 2008. Ou do curta-metragem Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, pioneiro em abordar o lixo da sociedade de consumo como narrativa. No entanto, 25 anos após o filme do cineasta gaúcho, ainda nos surpreendemos com mecanismos que facilitem o trabalho de reciclagem de catadores como Carlos e muitos outros.
O retrato da situação do lixo em São Paulo está nas lixeiras tradicionais diante dos prédios, invariavelmente gradeadas. O lixo trancado dificulta sua recolha, além de indicar que a elite paulistana não quer dividir nem seus restos. Seria mais racional que a cidade as substituísse por compactadoras similares às dos Jardins, assim a reciclagem realizaria seu trabalho essencial com mais eficácia e menos dolo. A compactação não eliminaria o catador, mas diminuiria o peso que ele carrega. A adoção de lixeiras compactadoras em maior proporção mudaria o cenário, mas mesmo assim o lixo precisaria ser recolhido num sistema que preveja recolha de recicláveis. O lixo, como tantos outros bens, precisa ser distribuído. Em 2006, a Oscar Freire, sempre na vanguarda, aterrou sua fiação elétrica, antecipando atual projeto da prefeitura. Tais melhorias são bem-vindas, mas consumidores de luxo não deveriam ser os únicos cidadãos com direito a ver o céu: os recicladores de lixo também merecem um novo horizonte.
JOCA REINERS TERRON É ESCRITOR E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE A TRISTEZA EXTRAORDINÁRIA DO LEOPARDO-DAS-NEVES (COMPANHIA DAS LETRAS) E DO TEXTO DA PEÇA BOM RETIRO 958 METROS, ENCENADA PELO TEATRO DA VERTIGEM ENTRE 2012 E 2013

sexta-feira, 2 de maio de 2014

China, uma nova corrida do ouro - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS


FOLHA DE S. PAULO - 02/05

A empresa que não obtiver participação importante no mercado chinês terá dificuldade para sobreviver


A China está entrando em nova fase em sua já longa marcha em direção a se tornar a maior economia do planeta Terra. Do ponto de vista meramente estatístico, isso deve ocorrer neste ano, se usarmos a metodologia do PPP para o cálculo do PIB, como estima projeto coordenado pelo Banco Mundial.

Mas ter o PIB maior do que o dos Estados Unidos não esconde o fato de que a China ainda é um país subdesenvolvido, para usar uma expressão que praticamente caiu em desuso.

O que mais surpreende nessa caminhada de um país paupérrimo --submetido ao regime político desumano e irracional sob o comando de Mao Tse-tung, apenas superado nesses quesitos pelos anos Stálin na Rússia-- em direção a um estágio superior de desenvolvimento econômico e social é a eficiência de seu planejamento estatal.

Nesses 30 anos de experiência de uma sociedade dirigida com mãos de ferro pelo Estado, mas com uma economia com tintas cada vez mais fortes de capitalismo, a vida do chinês comum mudou e mudou muito.

Sou testemunha ocular dessas mudanças, pois estive na China por duas vezes no início das reformas de Deng Xiaoping e voltei várias vezes nos últimos três anos.

Um exemplo incrível foi o desaparecimento das bicicletas das ruas de Pequim e sua substituição por modernos automóveis que circulam nos oito anéis, com mais de 800 quilômetros de extensão, que envol- vem a cidade.

Outra mostra visível --e que choca quem conheceu a velha China dos trajes azuis e iguais de algodão vagabundo de 30 anos atrás-- são os hábitos de consumo da juventude chinesa na parte do país que está integrada à economia de mercado. São 500 milhões de cidadãos que vivem hoje no que os economistas chamam de economia formal, com emprego e salários em expansão.

Em 2012, os salários cresceram em média 8% em termos reais e foram criados mais de 13 milhões de empregos formais, acelerando o caminho para criar o maior mercado consumidor do mundo por volta do fim desta década.

E é justamente esse fato que chamei, na abertura desta coluna, de a nova corrida do ouro para o capitalismo mundial. Nos próximos anos, a China será de longe o maior centro de consumo do mundo. Por volta de 2021, os números chineses vão moldar uma nova rodada da globalização da economia mundial.

Para ser verdadeiramente global, com todas as suas vantagens do ponto de vista da produtividade e rentabilidade, a empresa transnacional de hoje terá que ter uma participação importante na China. Aquelas que não conseguirem chegar a essa situação vão ter muitas dificuldades para sobreviver.

Dou um exemplo dessa afirmação: as montadoras de automóveis. Em 2021 o mercado chinês de veículos será no mínimo 70% maior do que o americano e quase o dobro do europeu. Nessa situação, sem uma parcela desse mercado, as empresas globais de automóveis terão que amortizar seus investimentos, em inovações e novos produtos, em um volume bem menor de produção.

Por uma simples conta de dividir, o leitor pode concluir que seus custos serão maiores do que seus competidores com acesso ao mercado chinês e, portanto, ficarão em situação mais frágil do ponto de vista econômico e financeiro.

Outro exemplo é o da indústria de telecomunicações e internet. Os gigantes Huawei e a Alibaba já dominam os mercados mundiais em termos de venda a valor adicionado.

Essa nova arma nas mãos dos planejadores chineses certamente vai ajudar nos próximos anos a transformar a China em um país extremamente poderoso. Certamente vamos assistir a mudanças importantes na forma como as multinacionais têm acesso ao mercado consumidor na China, em associação com capitais estatais ou privados chineses.

As restrições ao investimentos estrangeiro vão ser mais rígidas, e as empresas chinesas do setor automotivo vão passar por um violento processo de consolidação. Como resultado, vamos ter o aparecimento de ao menos dois ou três gigantes, com a produção anual de pelo menos 5 milhões de veículos.

Pelo menos para os analistas que, como eu, não acreditam no colapso do chamado modelo chinês na próxima década.

‘Vive la France’ - MONICA BAUMGARTEN DE BOLLE


sexta-feira, maio 02, 2014


O GLOBO - 02/04

Brasil enfrenta o estrangulamento econômico provocado por políticas desajustadas que soltaram as rédeas da inflação


Por que o livro de um jovem economista francês provocou tamanho rebuliço na imprensa e nos centros globais de poder? Como Thomas Piketty e seu “Capital no Século XXI” conseguiram seduzir Obama e a comunidade internacional, fazendo do livro um dos mais citados no Google, esgotando a tiragem da Amazon? Economistas laureados dos dois lados do espectro ideológico, gente da estatura do clássico Robert Solow e do keynesiano Paul Krugman, escreveram fartas e elogiosas resenhas sobre a obra de Piketty. De onde vem a inusitada exaltação, inimaginável no Brasil dividido que não enxerga mérito em argumentos contrários à visão de quem os contesta? O próprio autor fornece a resposta. Para os amantes da literatura do século XIX, para os leitores de Balzac e Zola, ficando apenas com os naturalistas franceses conterrâneos de Piketty, o interesse não é surpresa. Afinal, há tema mais engagé e empolgante, assunto que arrebata o leitor e que o arrasta pelas entranhas, do que o maniqueísmo atrelado a uma boa discussão sobre a desigualdade da riqueza?

A miséria dos trabalhadores das minas francesas retratada em “Germinal”, a luta ingrata do homem de classe média pela glória e pela fama, imortalizada no Lucien Chardon de “Ilusões perdidas”. O desespero de milhões de desempregados no mundo pós-crise, os jovens desalentados, aqueles que jamais tornar-se-ão os futuros Tim Cook da Apple. A desconstrução do american dream, minuciosamente documentada nos dados levantados por Piketty e seus coautores, eis a fórmula do sucesso, assim é que se faz um best-seller de economia. Um best-seller realista, na melhor tradição literária do século XIX, livro que fala do quadro de baixo crescimento global resultante da crise, quadro esse que conosco permanecerá. Obra que aborda sem rodeios o tema das grandes fortunas construídas no período de maior euforia dos mercados, estoque que não é desgastado pela economia global modorrenta, muito pelo contrário.

A tese central de Piketty é simples: quando a remuneração da riqueza (do “capital”) excede o crescimento econômico, a desigualdade aumenta, os ricos ficam mais ricos, a classe média e os menos abastados ficam para trás. Na melhor das hipóteses, permanecem estagnados. A descoberta parece óbvia e é isso que tanto a favorece. Como outras grandes descobertas, sua força reside precisamente em não ter sido vista antes, embora estivesse em ampla evidência. É a obviedade no melhor sentido do termo, aquela que tem profundidade. Infelizmente, aqui nas nossas bandas do Sul, a força do argumento foi ignorada pelos opinativos de sempre para que se pudesse desmantelá-lo de forma superficial. Não, a recomendação de instituir um imposto sobre o capital que a tantos deixou de cabelo em pé não é o ponto alto do livro, está longe de ser a maior contribuição da obra de Piketty.

Interessante mesmo é a regularidade empírica por ele desvelada, essa de que, quando as economias crescem pouco, os mais abastados é que se saem bem. Corolário disso é que, tudo mais constante, a remuneração da riqueza é tanto maior quanto menor for a inflação, quanto mais achatados forem os salários. Afinal, não há inflação sem pressão salarial, a conhecida espiral salários-preços. Quando há deflação, o efeito das quedas de preço sobre a riqueza é ainda mais forte. Pensem no Japão, cuja evolução do estoque de riqueza mais do que compensa a falta de crescimento das últimas décadas.

A deflação, ou a perspectiva de uma inflação persistentemente baixa, assombra o mundo. O debate macroeconômico nos EUA, na Europa, no Japão, no Reino Unido, está, em maior ou menor grau, influenciado por isso. A inflação é um bicho esquisito. Quando é baixa demais, aumenta a desigualdade num torvelinho vicioso; quando alta demais, também. Enquanto o mundo se engalfinha com o aumento da desigualdade associado à falta de crescimento e à estagnação dos salários, o Brasil enfrenta o estrangulamento econômico provocado por políticas desajustadas que soltaram as rédeas da inflação. O dilema brasileiro pode parecer o oposto do desafio mundial, mas leva ao mesmo lugar: o aumento da disparidade da renda — no caso, proveniente da corrosão dos rendimentos da classe média pela alta excessiva dos preços.

No Brasil, dizem que “a inflação é o âmago do debate”. Frase brilhante não fosse ela a expressão da mais rasteira obviedade. A inflação é sempre o âmago do debate, não só no Brasil. Os contornos do debate brasileiro são apenas diferentes, nem mais, nem menos importantes por isso. Que a inflação brasileira é resultado de políticas mal concebidas e de estratégias torpes não se discute. Ou melhor, discute-se à exaustão, o que dá no mesmo. Como debelá-la, salientando para a população em geral que esse é o desafio para reduzir a desigualdade e dar novo impulso ao processo de inclusão social, eis a tarefa dos presidenciáveis, esses que, até agora, preferem apenas apontar o dedo. O maniqueísmo é mais fácil, além de render boas manchetes para os jornais.

O livro instigante de Thomas Piketty prenuncia o advento de sociedades movidas, sobretudo, pelas fortunas herdadas, a débâcle da meritocracia. Escreve Balzac em “Ilusões perdidas”: "Por isso, quanto mais medíocre é alguém, mais depressa sobe; pode resignar-se a tudo, bajular as paixõezinhas baixas (...)”.

É o retrato desse Brasil brasileiro, tão século XIX.