quarta-feira, 30 de abril de 2014

Endireitar, no bom sentido


06 de abril de 2014 | 2h 10

SÉRGIO AUGUSTO - O Estado de S.Paulo
A cultura brasileira ia muito bem em todos os setores e com pelo menos um fenômeno internacional em seu crédito, a bossa nova, quando os militares usurparam o poder. Com apenas nove dias de mando, baixaram seu primeiro ato institucional e invadiram o câmpus da modelar Universidade de Brasília. Estava iniciada a guerra santa contra a inteligência nacional, que pelo gosto do comandante da invasão, coronel Darcy Lázaro, teria durado três décadas. "Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos", ameaçou o truculento invasor.
Passados 30 anos, a cultura brasileira permanecia viva e o coronel, historicamente morto. Àquela altura, quem fazia história era outro Darcy-o antropólogo Darcy Ribeiro, reitor da UnB enxotado pelo xará fardado em abril de 1964. Mas o coronel não foi totalmente esquecido. Se não ganhou uma estátua equestre, ao menos batizaram com seu nome um estande de tiro, no Distrito Federal. Sic transit gloria mundi.
Não foi por falta de empenho que os templários do obscurantismo verde-oliva perderam sua cruzada. Enquanto a UnB era invadida, tocaram fogo no prédio da União Nacional dos Estudantes, depredaram o Instituto de Estudos Brasileiros, ambos no Rio, e criminalizaram o ativismo do Centro Popular de Cultura (Rio e São Paulo) e do Movimento de Cultura Popular (Recife), dois antros de perigosos comunistas, na avaliação do novo regime. Em seguida vieram os expurgos e demissões em massa em colégios e universidades, os inquéritos humilhantes e sem fundamento jurídico, as ameaças, prisões e tortura de intelectuais, jornalistas e artistas; livros foram apreendidos e destruídos, jornais, filmes, peças, músicas e exposições censurados e proibidos.
Horrorizado, o mais respeitado intelectual católico da época, Alceu Amoroso Lima, desabafou: "Até hoje nunca tive medo do comunismo no Brasil. Agora começo a ter".
Quando beleguins do Dops recolheram numa livraria do Rio vários exemplares do romance O Vermelho e o Negro, de Stendhal, por suspeitá-lo "subversivo", o humorista Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, não se conteve: "A revolução está descambando para o perigoso terreno da galhofa". E deu por inaugurado o Febeapá, o festival de besteiras que começava a assolar o País. E continuaria assolando até depois da morte do humorista, quatro anos mais tarde. De enfarte, esclareça-se.
Ainda havia margem para críticas e gozações aos generais nos primórdios do regime militar. Mas nem por isso a revista de humor Pif-Paf, criada por Millôr Fernandes em 1964, conseguiu suportar as pressões da censura - no oitavo número, bateu mesa. Pif-Paf seria o embrião do semanário O Pasquim (lançado com o AI-5 já em vigor) e Sérgio Porto, seu patrono. Apesar de ameaçado de todas as formas pelo governo e até por atentados à bomba pelas forças de direita, O Pasquim logrou blefar a censura e sobreviver à ditadura. Já uma publicação séria, como a Revista Civilização Brasileira, aguerrida trincheira da intelectualidade liberal e de esquerda, viu-se obrigada a capitular após duas dezenas de edições.
Uma cultura de resistência, manifesta nas imagens ásperas de dois filmes de 1964, Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) e Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha), e no show Opinião, espetáculo musicado de contestação criado no ano seguinte por Oduvaldo Viana Filho, Armando Costa, Paulo Pontes e Augusto Boal para o Teatro de Arena do Rio, com Nara Leão (substituída por Maria Bethânia), Zé Keti e João do Vale, indicou um novo rumo para o cinema, a música popular brasileira, o teatro e as artes plásticas. De parâmetros renovados pela pop art e outras vertentes da arte conceitual, a geração de Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Cildo Meireles elaborou estratégias simbólicas e metafóricas para burlar o cerco à liberdade de expressão, aproximar-se de formas criativas mais populares, criticar o mercantilismo e desviar sua mirada para os horizontes do social, do político e do econômico.
A cultura mais viva, portanto, continuou à esquerda do regime, buscando manter-se à margem do sistema vigente de produção e consumo. Glauber Rocha, o Hélio Oiticica do Cinema Novo, fechou com a Estética da Fome, renegando o padrão narrativo das cinematografias hegemônicas. Oiticica, o Glauber das artes plásticas, optou por uma "nova objetividade", descentralizando a experiência estética das galerias e dos museus. Nem todos, mesmo à esquerda, apreciaram de estalo a exuberância alegórica de Terra em Transe (1967), por exemplo. José Celso Martinez Corrêa apreciou e, juntando a fome com a vontade de comer antropofagicamente, montou, na mesma clave, O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. A música de Caetano Veloso e Gilberto Gil e a pança de Chacrinha completaram o sarapatel tropicalista.
A geleia geral do tropicalismo foi a mais jubilosa contribuição que oferecemos à reviravolta cultural de 1968. Para tudo se acabar na diáspora provocada pelo AI-5. Bem que Millôr profetizara: "Ainda vamos sentir saudades do governo Castelo Branco". Quando abrimos os olhos, Caetano, Gil, Chico Buarque, Glauber, Ferreira Gullar e outros já haviam partido, como o irmão do Henfil, num rabo de foguete.
Quem ficou ou seguiu a receita que Brecht ensinara aos intelectuais alemães, antes de Hitler assumir o poder ("Num tempo em que você não pode dizer o que quer, continue trabalhando, faça o possível para que, no dia em que haja condições reais de você dizer o que quer, saiba fazê-lo melhor") ou conformou-se com contribuir involuntariamente para o "vazio cultural" que por um tempo desertificou nosso panorama intelectual e artístico.
No início dos anos 1970, antes de também partir para a Europa e dar prestígio internacional a sua Estética do Oprimido, Boal arriscou um palpite: o melhor do teatro brasileiro estaria confinado nas gavetas da censura. Mas quando as gavetas afinal foram abertas, a única obra fora de série que dela saiu foi Rasga Coração, de Oduvaldo Viana Filho.
No vácuo deixado pelo Grupo Oficina, quem mais viço deu à arte cênica foi Antunes Filho, com uma memorável encenação de Macunaíma, de Mário de Andrade, não por acaso a base de outro ponto luminoso nas trevas pós-64, o homônimo filme de Joaquim Pedro de Andrade. Além de nos salvar do marasmo criativo, a antropofagia e o tropicalismo, elas sim, ajudaram a endireitar, no bom sentido, a cultura brasileira.

O tapeceiro do passado

Na História de Jacques Le Goff, os contornos dos tempos perdidos ganham sutileza, cor, verdade

05 de abril de 2014 | 15h 09

Gilles Lapouge - O Estado de S. Paulo
Jacques Le Goff morreu em Paris aos 90 anos. Era o maior historiador francês e um dos últimos representantes da escola dos Annales, que desde os anos 1930 vem subvertendo na França e no mundo a leitura do passado dos homens. A primeira geração dos Annales foi a de Marc Bloch e Lucien Febvre; foi seguida por aquela do grande Fernand Braudel, que em1936 lecionou na recém-fundada Universidade de São Paulo; depois da guerra, sucedeu-lhe a terceira geração, com Georges Duby, Leroy-Ladurie e, principalmente, Jacques Le Goff.
Viajante. Ele via a Idade Média feita de sombras, mas também de luz sublime - Divulgação
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Viajante. Ele via a Idade Média feita de sombras, mas também de luz sublime
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Esses grandes intelectuais dotaram a pesquisa histórica de um novo suporte lógico. Em vez de se debruçarem apenas sobre as batalhas, as coroações ou as tragédias, dedicaram igual interesse à vida cotidiana, ao que chamavam de non-événementiel (não factual): a metamorfose das mentalidades, a transformação dos hábitos, as lentas evoluções da maneira de amar, de alimentar-se, de morrer; as descobertas das paisagens, os jogos da paixão, as relações dos homens com o próprio corpo, as festas, as flexões das palavras e da linguagem.
Eles urdiram uma nova tapeçaria do passado. As imagens dos tempos perdidos ganharam em sutileza, verdade e cor. Além dos períodos convulsionados da história tradicional, estudaram os períodos pesados, lentos, quase viscosos que moldam o caráter das sociedades de maneira bem mais profunda que as guerras e o cerimonial da política.
Nessa ressurreição do passado, Jacques Le Goff ocupa uma posição eminente. Não apenas presta atenção a cores jamais percebidas como faz surgir do abismo da morte, do fundo do tempo, todo um continente, uma Idade Média desconhecida que a nossos olhos maravilhados se revela como os emergentes destroços de um navio magnífico, carcomido por moluscos e ferrugem e ainda resplandecente dos matizes das profundezas.
Ele busca e apreende essa Idade Média na consciência dos homens. Estuda seus sonhos e terrores, palavras e quimeras, corpos e alimentação. Ouve o gargalhar das bruxas, o sussurrar das monjas em oração no branco manto das igrejas e mosteiros que na Idade Média cobriam a cristandade.
A história de Le Goff nos seduz de outras maneiras. Seus escritos revelam o prazer, a fruição que ele experimenta ao devorar velhos manuscritos, antigos vestígios semiapagados, sacudindo a poeira que cobria, até sufocá-las, antigas representações que tínhamos daqueles tempos. "O pó se levanta ao poderoso vento do mar aberto", diz ele.
Em suas retortas de alquimista, Le Goff descobre paisagens jamais suspeitadas. A Idade Média não é mais a "noite negra" que separava, na história tradicional, o fim do Império Romano da Renascença. Uma nova Idade Média se descortina, feita de sombras, evidentemente, mas também de uma luz sublime. Essa Idade Média inédita é a verdadeira matriz de nossa modernidade.
"É na Idade Média’, afirma Le Goff, "que se constitui o elemento fundamental de nosso cristianismo. É nela que vemos a formação do Estado e da ideia de soberania. E também o surgimento da língua francesa, o desenvolvimento urbano e a fundação da cidade moderna. É sempre na Idade Média que vemos crescer as universidades, fenômeno novo e europeu. Porque a Europa também nasce na Idade Média."
Quais de seus livros podemos citar? O mais célebre é A Invenção do Purgatório, que se situa no século 12. Le Goff não só acompanha as etapas do surgimento como explica o motivo pelo qual, nessa época, os homens repudiam a terrível divisão entre bem-aventurados e amaldiçoados, inferno e paraíso, e acham mais compassivo acrescentar a um maniqueísmo atroz os estágios intermediários do purgatório para se ter em conta a infinita variedade do Mal e do Bem.
Jacques Le Goff tinha outra virtude. Homem da palavra, apresentava sua bela Idade Média no rádio. Seus programas fascinaram a França. Ele "representava" a história no rádio como a representava em seus cursos. Quando trabalhava numa grande biografia do rei São Luís, fascinou seus alunos descrevendo como o corpo (sagrado) do rei, que morreu de peste durante a oitava Cruzada, foi fervido pelos companheiros para que seus ossos pudessem ser levados de volta à França.
Era um apreciador dos bons vinhos e da boa cozinha, um brilhante interlocutor. Compartilhar um jantar com esse grande amante da vida era uma festa. Lembro-me de um deles. Ao ser servido um queijo de cabra na sobremesa, Le Goff começou a comparar a crosta do queijo, de cor cinzenta, bronze, azulada e ferrugem, recoberta de pequenas borbulhas, ao grão da pintura dos quadros de Giotto e Fra Angelico. Dali, divagou como num sonho e nos transportamos, como por um passe de mágica, da crosta do queijo de cabra para a cidadezinha de San Gimignano, depois para Florença e a dinastia dos Médicis, terminando com não sei que papa dos albores da Renascença. Tudo isso, todo esse teatro, estava como que escondido no humilde queijo de cabra. Le Goff terminou a representação dando uma dentada decisiva no queijo que, de repente, tornara-se algo sublime aos nossos olhos.
É emocionante e eloquente ver, neste momento em que o grande explorador e viajante do tempo já não está entre nós, o jornal Le Monde pedir ao grande escritor italiano Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa, seu testemunho sobre esse que foi seu amigo. Como se o historiador rigoroso que foi Le Goff só pudesse ser celebrado por um dos maiores romancistas europeus. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

A única julgada


'Minha mãe foi morta por andar à noite, parar num quiosque e - cúmulo da provocação - ser mulher'

06 de abril de 2014 | 2h 09

CLARISSA THOMÉ - O Estado de S.Paulo
Conheci o que era maldade no carnaval de 1994. Na Quarta-feira de Cinzas, um pescador resgatou o corpo de minha mãe do mar de Piratininga, na Região Oceânica de Niterói, no Grande Rio. Ela estava nua, a calcinha enrolada no pescoço. Havia sido atacada no calçadão, a 600 metros da nossa casa.
Minha mãe, a jornalista Sílvia Thomé, tinha saído para andar na praia à noite, porque tinha uma reunião de trabalho bem cedo no dia seguinte - repórter de economia, deixara a rotina do jornalismo diário para se dedicar a um sonho que ela e meu pai dividiam havia algum tempo: um jornal de bairro, que fizesse "jornalismo de verdade", e não fosse apenas "espaço para anúncios". Juntos, tocavam o Caderno Oceânico.
Aos 40 anos, tentava parar de fumar e as caminhadas a ajudavam a reduzir a ansiedade. Ela reclamou do horário marcado para a reunião - impediria o exercício matinal. Meu pai, ao deixá-la em casa (já estavam separados), sugeriu que caminhasse à noite. Seguiu o conselho. Depois de andar, parou com minha irmã num quiosque. Minha mãe tomou uma cerveja, Giovana, uma Coca-Cola. Giovana voltou mais cedo; queria ver um filme na tevê. Minha mãe não voltou mais.
Nunca saberemos o que de fato ocorreu. Quando ela foi encontrada, calçava uma das sandálias; a outra estava junto ao quiosque - o que deixa claro que a agressão começou ali. Mas numa era pré-luminol (substância química que realça vestígios de sangue, mesmo depois de o ambiente ser lavado), pré-DNA, só tínhamos evidências. Nenhuma prova.
O que sabemos é que nossa mãe lutou muito contra seu agressor. O laudo do Instituto Médico Legal mostrou que ela sofreu hemorragia interna por perfuração do baço, provocada por espancamento. Teve o braço direito quebrado; tinha um grande hematoma na testa. Por fim, o sufocamento - constrição do pescoço é o termo técnico.
Como o corpo foi jogado no mar e passou um dia inteiro na areia, sob o calor daquele fevereiro infernal, os peritos não concluíram se ela foi ou não vítima de violência sexual. E por muito tempo isso me confortou, de alguma forma. Pelo menos essa dor a mamãe não passou, eu dizia para mim mesma, como se fosse possível encontrar consolo em meio à tragédia.
Sabemos ainda que ela foi morta por ser mulher. Se meu pai tivesse decidido tomar uma cerveja no quiosque, não teria sido importunado. Não teria ouvido gracejos. Teria voltado para casa. Minha mãe era presa fácil: um metro e cinquenta e cinco, pouco mais de 40 quilos. Sozinha, num trecho escuro do calçadão - o refletor naquele ponto da praia estava quebrado havia semanas.
Restamos três meninas apavoradas - eu tinha 18 anos, Giovana, 16, Maíra, 13. Além de perder nossa mãe, perdemos nossa casa. O assassino ainda estava solto. Como caminhar naquele calçadão? Como mergulhar naquelas águas? Fomos morar com nossos avós.
Uma morte violenta como essa deixa marcas profundas - todos nos sentíamos culpados. Giovana por tê-la deixado sozinha. Meu pai por ter sugerido a caminhada noturna. Eu e Maíra porque estávamos viajando - há 20 anos não viajo no carnaval. Meu avô, que estava no início do processo de Alzheimer, desligou-se de vez da realidade. Morreu dois anos depois.
Em 2004, um suspeito foi absolvido no tribunal do júri. Na verdade, só minha mãe foi julgada naquele dia. A promotora chegou a perguntar: "Mas ela estava sem sutiã?". Estava. E ninguém tinha nada a ver com isso. E a roupa que usava não justificava agressão alguma. Minha mãe também era culpada. "Isso era hora de estar na rua? O que ela estava querendo, bebendo sozinha num quiosque na praia?", ouvimos muitas vezes.
Falar sobre esse tema é muito doloroso. Giovana e Maíra muitas vezes disseram que nossa mãe havia morrido de câncer. Encerrava o assunto. Sustava os por quês. E poupava do inevitável olhar de pena. Eu sempre escolhi a verdade. Essa é a nossa sociedade - machista, preconceituosa, em que a impunidade é regra. Temos de lidar com isso para poder transformá-la. Passei a usar uma estratégia: falo sobre o crime como quem comenta uma matéria. Como se não tivesse acontecido com a gente.
A primeira vez que menti sobre a morte de minha mãe foi para meu filho, que tinha 4 anos quando quis saber "como a vovó morreu". Assalto, filho. Mas o bandido está preso. Não sabia como explicar para uma criança que alguém pode ser morto só por ser mulher. E que quem faz uma coisa dessas escapa ileso.
Decidi escrever sobre a minha mãe ao ler o depoimento da professora Daiara Figueroa, no Facebook. Em meio a tantas fotos com cartazes "não mereço ser estuprada", o dela surgiu assustador, com o verbo no passado. Escrevi em solidariedade. Acabei descobrindo que também não estava sozinha - foram mais de 7 mil compartilhamentos, dezenas de mensagens de apoio, e o que mais me impressionou: relatos de violência sexual, alguns cometidos na própria família.
Depois de 20 anos, a memória embaralha, as lembranças se confundem, muita coisa se perde. Há algum tempo uma amiga de infância da minha mãe perguntou: "Lembra da gargalhada dela?". Eu já não lembro. Mas não vou me esquecer nunca do amor intenso que ela sentia por nós. E é por causa desse amor que ficamos inteiras, unidas, apoiadas sempre num pacto quase infantil, feito no momento em que enterramos nossa mãe - juntas somos uma.   CLARISSA THOMÉ É REPÓRTER DO ESTADO NO RIO