domingo, 30 de setembro de 2012

A década includente


OSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA , DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE EXCLUSÃO SOCIAL, A NOVA DESIGUALDADE (PAULUS) - O Estado de S.Paulo
Ouço, num link de transmissão sonora e visual do site do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), a exposição com que seu presidente, Marcelo Neri, dá aos jornalistas a boa notícia de que na última década a distribuição de renda no Brasil melhorou. Sumariza ele os resultados do estudo A Década Inclusiva (2001-2011) - Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Diminuiu a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Ao mesmo tempo, tenho diante de mim a primeira página de O Estado de S. Paulo de 5ª feira. Nela, uma fotografia de Tiago Queiroz retrata um miserável encolhido de frio sob um improvisado barraco na rua, feito de placas de propaganda de candidatos a vereador na cidade de São Paulo.
O nó da feliz estatística anunciada está em baixo daquele tapume. A começar pelo fato de que os dados para medição da distribuição de renda se baseiam na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD. Aquele barraco não é domicílio, como não o é o chão em que milhares de pessoas, em nossas cidades, dormem no pesadelo cotidiano da incerteza. Os que mais carecem não são alcançados nem pela distribuição da renda nem pelas estatísticas sobre pobreza.
Neri não pretende passar um retrato descabidamente otimista sobre a melhora relativa na repartição dos ganhos da economia. Antes, assinala que estamos chegando ao padrão de distribuição de renda que tínhamos em 1960, embora a sociedade fosse mais pobre que hoje. Poderíamos definir esse meio século como o longo tempo da modernização da pobreza no Brasil, uma pobreza, agora, de privações dramáticas. Serão necessários pelo menos 20 anos para chegarmos ao padrão de distribuição desigual da riqueza de países como os EUA. Mas ainda temos lastro para incrementar a distribuição de renda e atenuar as desigualdades que nos afligem. Na média, nossos pobres estão se tornando apenas menos pobres.
O estudo se baseia no pressuposto de que a pobreza dos 10% mais pobres é apenas uma questão de grau em relação aos 10% mais ricos. O Bolsa-Família e o programa de Benefício de Prestação Continuada, programas compensatórios do governo que incrementam a renda dos mais pobres, são decisivos para atenuar a distribuição desigual de renda. O estudo econômico não avalia, porém, nem tem por que avaliar, que esses benefícios não deslocam necessariamente o eixo social de referência dos beneficiados, especialmente os pobres do campo, cuja economia pré-moderna é predominantemente baseada na produção direta dos meios de vida.
As doações financeiras do governo, não obstante, corroem a lógica econômica dessas populações, incrementando em sua vida necessidades sociais que dependem de mais dinheiro e mais mercadorias de fora de seu sistema econômico restrito. Um processo clássico de desenraizamento de populações retardatárias da história, tão característico do Brasil e da América Latina.
É nessa perspectiva que se pode analisar uma das importantes constatações do estudo, a de que "a renda daqueles que se identificam como pretos e pardos sobe 66,3% e 85,5% respectivamente, contra 47,6% dos brancos". Uma de suas conclusões é a de que: "Mais que o país do futuro entrando no novo milênio, o Brasil, último país do mundo ocidental a abolir a escravatura, começa a se libertar da sua herança escravagista".
Ora, a distinção censitária de pretos e pardos e, aqui, a indicação da melhora diferencial que tiveram na distribuição de renda precisam ser devidamente matizadas. O censo mostra que a maior concentração dos que se identificam como pardos está no Norte do País e a maior concentração dos que se identificam como pretos está no Nordeste litorâneo, o chamado Nordeste açucareiro. Embora haja uma tendência confusa no sentido de tratar os pardos como negros que se envergonham de sua negritude, o fato é que a concentração regional nos diz que os pardos não são mulatos, são pardos mesmo, como eram classificados no período colonial os índios administrados, aqueles submetidos a cativeiro. Oriundos, pois, de uma escravidão jurídica e sociologicamente distinta da escravidão negra, formalmente libertados pelo Diretório dos Índios do Maranhão e Grão-Pará, em 1755. Diferentes do negro libertado pela Lei Áurea de 1888. Ambos os grupos mantidos à margem da liberdade jurídica que lhes fora concedida e reduzidos a formas disfarçadas de servidão.
Nesse sentido, o que aparece como melhora na distribuição de renda, em relação sobretudo às populações oriundas das duas escravidões que tivemos (e da terceira que ainda temos), é também um avanço na emancipação que as libertou pela metade. O pequeno incremento de renda que os setores mais pobres da sociedade tiveram na década permite-lhes, ainda que na crua contradição de inserção mais ampla no mercado e maior corrosão de seus costumes e de seu modo de vida, acelerarem sua travessia histórica para a sociedade moderna.

Procuram-se virgens

Oesp Alias, 30 set 2012

DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNB, PESQUISADORA DA ANIS - INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO - O Estado de S.Paulo
Um leilão de virgens em território global. Foi nesse cenário que Catarina Migliorini, catarinense de 20 anos, se lançou: o espetáculo de ser uma virgem leiloada para um documentário dirigido por um australiano. Já foram feitos 13 lances, o mais alto de US$ 160 mil, oferecido por Jack Miller, americano ainda desconhecido. Catarina será desvirginada em um voo da Austrália para os EUA, estratégia para burlar leis locais que restringem a prostituição ou o comércio do sexo. O site "procuram-se virgens" lista as regras da penetração: brinquedos eróticos e beijos são proibidos; não pode haver filmagem ou audiência; o tempo mínimo de consumo da virgem será de uma hora. O leilão atiça a curiosidade sobre o filme, cujo enredo está a meio caminho de um documentário, reality show e pornografia.
Alexander é o virgem em leilão. Catarina comprovará sua virgindade por exames ginecológicos, mercadoria mais difícil de ser demonstrada no corpo de Alexander. Por isso a aposta nas imagens e na história de vida do rapaz: um tipo tímido que não olha para a câmera, quem sabe um solitário à procura da proteção de uma mulher madura. Sua virgindade vem sendo pouco cobiçada - o lance mais alto foi de US$ 1.200, oferecido por uma australiana. O diretor tentou não ser óbvio no espetáculo do sexo ao incluir um virgem no enredo, mas a audiência resiste à igualdade na exploração sexual de homens e mulheres: Catarina é a mercadoria em disputa e certamente será a protagonista do filme. Alexander, um coadjuvante. Sua utilidade é aliviar a barra com as feministas críticas do comércio do sexo, caso da jurista americana Catharine MacKinnon, para quem a prostituição e a pornografia são danosas às mulheres.
Não sou uma seguidora de MacKinnon na perseguição à pornografia ou à prostituição - desconfio de sua tese de que homens que veem filmes pornográficos violentos buscam reproduzir suas fantasias no corpo de outras mulheres, ou mesmo que proibir o comércio do sexo protege as mulheres da exploração sexual. Mas há algo de inquietante na disputa por Catarina que ressoa da ordem moral em que o sexo das mulheres é uma propriedade masculina. Afinal, o que querem os homens ao leiloar uma virgem? Reanimar o tabu do sexo. Há mulheres em abundância dispostas, por prazer, dinheiro, ou ambos, a manter relações sexuais com homens. Muitas são virgens. O filme nos transforma em audiência de um jogo que não desafia a moral hegemônica; ao contrário, brinca com suas normas.
Uma prostituta é uma mulher disponível no mercado. Uma virgem é uma mulher à espera de um homem. A prostituta é a mulher da rua; a virgem, a da casa. O filme mistura os papéis, joga com as fantasias sexuais: a virgem é, agora, uma prostituta, a mulher que será penetrada em um espetáculo global, mas que não será visto. A câmera acompanhará o casal até a entrada do avião e a cena de sexo será apenas imaginada, como a que ocorre com as virgens na noite de núpcias. Seremos voyeurs de uma mulher que vende seu sexo como em um filme pornográfico, mas o tom documental da história a manterá na redoma protegida das virgens.
O tabu do sexo perturba não apenas nossa moral, mas o estatuto narrativo dos filmes. Por isso há algo de político nesse documentário. MacKinnon persegue os filmes pornográficos porque considera que as cenas de sexo são reais: uma mulher violada em um filme pornográfico é, de fato, uma mulher violada. Catarina será desvirginada - haverá um antes e um depois em seu corpo, segundo as perícias médicas. Mas ela reclama para si o estatuto profissional de atriz e não de prostituta: é uma atriz que venderá sua imagem e seu hímen para um documentário sobre como o tabu do sexo movimenta mercados e audiências.

O injustiçado videogame

OESP, Aliás 30 set 2012
LIDIA GOLDENSTEIN É ECONOMISTA; COLABORARAM TEREZA PEREZ, SANDRA GARCIA E HOMARO LIMA - O Estado de S.Paulo
LIDIA GOLDENSTEIN
O avanço da tecnologia digital vem causando impactos radicais nos processos de produção, distribuição e consumo, consolidando um novo paradigma produtivo que afeta cidades e empresas de todos os tipos e tamanhos, nos mais diferentes setores, tecnológicos ou não, nas mais diferentes economias.
A diferença em relação a outras grandes transformações pelas quais a humanidade já passou não é só a velocidade e intensidade do processo atual. As novas tecnologias vêm permitindo a queda de preços no lado da oferta e gerando consumidores mais ricos, diversificados e sofisticados que sustentam a demanda por bens e serviços de maior valor agregado. E essa agregação de valor é crescentemente determinada pelos investimentos em ativos baseados no conhecimento, os chamados intangíveis: pesquisa e desenvolvimento, design, software, capital humano e organizacional e marcas.
São transformações que impactam não só a forma e locais de produção de "velhos" setores como permitem o surgimento de novos, como o de games, cujo mercado mundial movimentou US$ 56 bilhões em 2010, enquanto o de cinema foi de US$ 31,8 bilhões. Em 2011 o setor movimentou US$ 74 bilhões, e as previsões são de US$82 bilhões em 2015. No Brasil, um dos mercados que mais cresceram nos últimos anos, e visto como um dos com maior potencial, estima-se que já esteja perto de US$ 3 bilhões.
Apesar de ser uma das indústrias que mais crescem, já superando os mercados de filmes e música, os videogames ainda sofrem preconceito, vistos como atividade restrita a jovens que perdem horas de estudo com games violentos. Essa percepção, especialmente por parte de pais, compromete uma avaliação do potencial dos games como setor econômico e ferramenta educacional.
Na verdade, não só os games não são mais exclusivos dos jovens, incluindo crianças, idosos e mulheres no seu mercado, como o setor é portador de uma capacidade de inovar-se continuamente, contribuindo para a inovação do conjunto da economia. Englobando um complexo de atividades criativas e/ou vinculadas às novas tecnologias, vem gerando novos produtos e serviços, processos produtivos e distributivos, que "transbordam" para atividades em outras empresas e organizações dentro e fora do setor, em especial na educação, em pesquisas científicas, treinamento de profissionais corporativos, escolha e desenvolvimento de vocações, construção civil e arquitetura.
Avanços tecnológicos recentes têm contribuído para mudar a indústria de games, seus modelos de negócios, sua audiência e sua visibilidade. A ampliação do poder de processamento dos hardwares e da capacidade gráfica, a expansão da internet e da banda larga móvel permitiram o surgimento de jogos online, interconectando pessoas no mundo todo e incorporando milhões de jogadores de diferentes perfis etários e sociais. Abriu-se espaço para desenvolvedores independentes e pequenas empresas que não dependem mais de capacidade de distribuição física de seus jogos, distribuindo-os virtualmente. Muitos games estão deixando de ser um produto para se tornarem um serviço.
Assim como outros setores das indústrias criativas, a indústria de games necessita de mão de obra altamente sofisticada, multidisciplinar, que combine o conhecimento em ciências, tecnologia, engenharia, física, matemática e artes, o que exige um sistema educacional completamente diferente, que inclua a fusão dos conhecimentos.
E é exatamente por seu uso crescente como recurso pedagógico privilegiado para o desenvolvimento de habilidades e para a construção do conhecimento que o jogo tem sido um dos caminhos para a inovação do sistema educacional, adequando-o às necessidades do novo paradigma produtivo.
Os jogos, quando bem utilizados, especialmente com uma mediação eficaz, ajudam na aprendizagem e no desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais, sociais e éticas: raciocínio, resolução de problemas, orientação espaço-temporal, perspicácia, criatividade, autoconhecimento, autodisciplina, autoconfiança, autodeterminação, autoestima, iniciativa, autonomia, segurança, responsabilidades, limites, controle da impulsividade, desenvolvimento psicomotor, linguagem, sentimento de competência. O jogo propicia liberdade de ação, o que implica sujeito ativo, interativo e inventivo. Por meio dos jogos é possível trabalhar em equipe, ter atitude pesquisadora, cooperar, planejar e tomar decisões, refletindo na melhora do desempenho escolar e no relacionamento entre colegas, pais e professores.
Diversas pesquisas indicam que jogar contribui de forma prazerosa para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional. As regras são normas reguladoras e necessariamente respeitadas no processo de interação; caso contrário o contrato ético e moral é rompido imediatamente e o jogo termina. Jogar envolve uma carga emocional significativa, como atacar, cuidar, proteger, controlar, disfarçar, respeitar, desejar. Esses aspectos emocionais interagem por meio do planejamento da sequência de cada jogada e entre jogadas, o fazer antes, durante e depois.
Quando o jogo é inserido no currículo escolar, seu papel ultrapassa as fronteiras do jogar e assume significados amplos. O pensar sobre o jogar permite tomar consciência dos conhecimentos e competências que estão "em jogo". O professor, ao propor o jogo, tem que abandonar o papel de solucionador em favor de um papel de "problematizador", atuando como orientador, mediador, perguntador. No jogo, o professor não pode fazer pelo aluno, pois se o fizer acaba com a graça do jogo. Cabe ao professor mediar essa relação, respeitando o processo de aprendizagem de cada um, valorizando o conhecimento do aluno e a criação de melhores possibilidades de aprendizagem.
Pensar estratégias de longo prazo para a economia brasileira, que abram espaço para o surgimento/fortalecimento de novos setores e novas tecnologias, líderes na geração de renda e emprego no novo paradigma produtivo, só será possível se pensarmos junto uma nova abordagem educacional.