domingo, 2 de novembro de 2025

No mundo que comanda o País, retórica malandra de Oruam ganha do grito desesperado de Dona Joelma, Fernando Schuler, OESP

 

Atualização: 

“Foi um fracasso, um horror inominável”, disse a ministra Macaé Evaristo, sobre a operação no Rio de Janeiro. A ministra acertou na palavra, mas errou no alvo. O fracasso não é da operação. É do país inteiro. Se 130 pessoas perdem a vida em uma operação policial, há muito já nos convertemos em um fracasso. O drama carioca nos ensina algumas coisas. O crime se instala onde o Estado é frágil. Enquanto o caos se instala no Rio de Janeiro, lemos que São Paulo vem registrando o menor índice de homicídios e latrocínios dos últimos 25 anos. A esquerda não vai gostar da notícia pois é o outro lado que está no governo. E é aí que vive nosso problema. Jogamos pela janela o aprendizado sobre o que funciona, porque nossa prioridade é o proselitismo político.

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Outra coisa que sabemos: o Estado não pode abrir mão do controle territorial. Estudo recente mostrou que perto de um quarto de nossa população vive em áreas com forte controle do crime. Andamos no topo da América Latina, neste quesito. Foi exatamente o que assistimos. As favelas, no Rio, funcionam como uma espécie de estado de natureza, e não é por acaso que as pesquisas mostram um forte apoio de seus moradores à operação. Na base da sociedade, há um desejo de ordem. No mundo idealizado de certa elite ainda vigora uma irresponsável glamourização da violência. O tipo que mora em Ipanema, termina a noite do Sushi Leblon e pede, entre uma e outra taça, a “desmilitarização das PMs”. Uma glamourização do universo marginal que vem do fundo da nossa cultura. Da fronteira tênue entre o malandro, o herói e o bandido. Do “seja marginal, seja herói”, na obra de Hélio Oiticica sobre o bandido Cara de Cavalo. No fundo, o desvio ético consentido. Da violência que, de longe, não soa assim tão violenta. Da vida das pessoas que é um inferno, no mundo real, mas que por vezes serve como destino exótico, em um domingo de verão.

Sua prima-irmã é a filosofia Oruam. “Meu pai é reflexo da sociedade”, diz ele, falando do Marcinho VP, do Comando Vermelho, e um dos criminosos mais perigosos do Brasil. A frase vale para qualquer coisa. Mas, usada para justificar o crime e nossa inércia com a violência, se converte na armadilha perfeita. Sua negação veio da Joelma, a mãe do Artur, traficante jovem que teve a sorte de ser preso, na operação. “Você não é vítima da sociedade! É vítima de suas escolhas!”, gritou ela para o filho, cabisbaixo, no canto de uma delegacia. Do jeito que só uma mãe sabe dizer, ela dizia que acreditava nele, que a pobreza não produzia o crime, que havia um espaço para a escolha e a responsabilidade individual.

É o mesmo que penso sobre o Brasil. Vítima de suas próprias escolhas. Se o crime tomou conta da favela, é porque fomos escorregando, por conta própria, como o Artur. E não por falta de aviso. O ponto é que no mundo que comanda o País, a retórica malandra de Oruam ganha fácil do grito desesperado de Dona Joelma. E isto não deveria ser assim.

Muniz Sodré - Carta branca para o invisível, FSP

 Muniz Sodré

Deu no jornal que o italiano Salvatore Garau produziu uma escultura invisível, já vendida pelo equivalente a R$ 80 mil. O comprador tem à disposição apenas um suporte sem nada por cima, mas leva para casa o "espírito" e a assinatura do autor. É algo bizarro, mas pouco surpreendente no rol das extravagâncias que há muito tempo fazem o espetáculo nas galerias de arte em todo o mundo. Na verdade, a arte moderna é principalmente avaliada pela subjetividade do artista, materializada em sua valiosa assinatura.

A imagem mostra uma grande multidão de pessoas caminhando em uma rua. As pessoas estão vestidas de maneira variada, algumas usando casacos e capuzes, indicando um clima mais frio. O cenário é urbano, com edifícios ao fundo e sinais de trânsito visíveis. A maioria das pessoas parece estar concentrada em seu caminho, algumas olhando para frente e outras para baixo. A iluminação sugere que a foto foi tirada durante o dia, possivelmente no início da manhã ou no final da tarde.
Pessoas caminhando pela avenida Paulista; um eleitorado sem cara nem voz tem a mesma fajuta consistência política da escultura invisível do italiano espertalhão - Rafaela Araújo - 24.jun.25/Folhapress

O singular na experiência desse italiano é que ele faz dinheiro com invisibilidade: "Não vendi o nada, mas um vácuo cheio de energia". O comprador tem consciência de que paga por algo imaterial, mas como se ali estivesse presente o germe de uma invenção social e cultural, portanto, outra marca civilizatória, latente no invisível da sociedade, seu espírito. O fato é que a experiência social ultrapassa os aspectos sensíveis da vida comum, atribuindo significações a coisas potencialmente acolhidas pelo imaginário coletivo.

O fenômeno sugere alcance mais extenso. Numa pesquisa recente da ONG paulista More in Common sobre a polarização no Brasil, descobriu-se que a maioria da população (54%) é formada por dois segmentos, classificados como "invisíveis", que não têm posições extremas nem o menor grau de engajamento político. Os extremos, progressistas ou direitistas, são estridentes, logo, visíveis. Já os invisíveis não querem ver nem serem vistos, seu estatuto lógico é o do "um-qualquer", cujo lugar de fala dispensa a mediação, garantindo-se por si mesmo. É a natureza do conhecimento gerado pela rede eletrônica.

De fato, quando você informa algo a alguém, a sua fala tem de ser confiável, portanto, o dito precisa ser garantido por escuta e fala de outro. Se você é um-qualquer, a informação pode até ser operativa na prática. Mas, legitimada apenas pelo próprio falante, não pertence ao conhecimento consensual, que exige o reconhecimento implícito dos pares. Sem isso, o lugar de fala do um-qualquer fragmenta a confiança, logo, a credibilidade. É a realidade da internet.

Como razão própria, o escultor Garau provavelmente se apoiaria em sua frase de que "o vazio é uma forma de presença". Mas quando se trata da plenitude inerente à vida democrática, essa invisibilidade é socialmente disruptiva. É o que agora acontece no Brasil, onde a governança paralela e invisível das facções criminosas organizadas assusta a nação.

Na esfera pública, visibilidade funda a prática política. Basta ver Trump, uma hipervisibilidade midiática acima de partidos apagados. A luta das minorias pelo reconhecimento de suas vozes passa por sujeitos visíveis no espaço comum. Na falta disso, um eleitorado sem cara nem voz (54%), manipulado por financistas, bets mafiosas, extremistas, igrejas bilionárias e algoritmos, tem a mesma fajuta consistência política da escultura invisível do italiano espertalhão. Um corpo parasitado por aliens invisíveis ("narcoterrorismo", comunismo etc.) que a extrema direita inventa e finge combater.


Brasil zera importação de mercúrio e monta operação para levar resíduos para Alemanha, FSP

 João Gabriel

Brasília

O Brasil vai zerar a importação de mercúrio neste ano e desativar as últimas fábricas do país que compram o material. Para evitar que os rejeitos sejam desviados para o garimpo ilegal de ouro, foi montada uma operação para descartá-los na Alemanha.

A decisão é uma das entregas que o país leva para a Convenção de Minamata, que trata do combate aos efeitos nocivos que este metal pesado tem para pessoas e para o meio ambiente em geral. O evento começa nesta segunda-feira (3) na Suíça.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami em 2023 - Alan Chaves - 24.fev.23/AFP

Historicamente o mercúrio tem diversas aplicações, como lâmpadas, termômetros, cosméticos, amálgamas dentárias e produção de cloro e soda cáustica, mas, com a modernização da indústria, tem caído em desuso.

No Brasil, apenas as últimas duas atividades usam o metal atualmente, e o governo Lula (PT) atua para que isso tenha fim até 2030.

Em 2025, não houve importação autorizada de mercúrio para o Brasil —a indústria de amálgamas dentárias já compra o produto pronto.

A partir do ano que vem, começa o processo de descomissionamento das últimas três fábricas —todas de cloro— que trabalham com o elemento em estado puro. O fim do uso deste metal nessa indústria é um dos compromissos da Convenção de Minamata.

O mercúrio também é um insumo essencial para o garimpo ilegal de ouro. Algumas das formas de comercialização do material para essa finalidade é pelo desvio de lotes que entram no país legalmente ou com notas fiscais fraudadas de compras no exterior —possibilidades que deixam de existir com o fim das importações.

"Ao encerrar o uso industrial e restringir as entradas formais do produto, o Brasil fortalece o controle sobre o comércio e o uso do mercúrio, dificultando o abastecimento do mercado ilegal, reduzindo a contaminação ambiental e cumprindo compromissos internacionais assumidos no âmbito da convenção", afirma o secretário Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Adalberto Maluf.

A atividade criminosa explodiu durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), impulsionando o desmatamento dentro de terras indígenas e a destruição e contaminação dos rios.

O caso mais notório foi o do território Yanomami, que desde 2023 passa por uma megaoperação para desintrusão de invasores.

O mercúrio é usado para a separação do ouro e acaba se misturando com a água dos rios e então contamiona peixes, fonte primária de alimentação dos indígenas que, ao consumirem a comida, ingerem também este elemento.

Por ser um metal pesado, ele não é expelido nem neutralizado em nenhuma etapa deste processo, e não há cura depois que ele entra no organismo.

Seus efeitos são sentidos mesmo com pouca ingestão e aumentam conforme a quantidade. Um estudo da Fiocruz na Terra Indígena Yanomami mostrou que ele causa graves deficiências cognitivas em bebês e fetos —uma vez que atravessa a placenta de mães gestantes.

Em adultos causa perda de visão, alteração da audição, dificuldade na coordenação motora, diminuição da sensibilidade e problemas cardiovasculares, com aumento no risco de infarto do miocárdio e hipertensão.

Desde o início de 2023, foram mais de 7.000 operações contra o garimpo realizadas na Terra Indígena Yanomami e cerca de R$ 12 milhões em multas ambientais aplicadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).

Para calcular o valor dessas autuações, o instituto utiliza uma calculadora criada pelo CSF (sigla em inglês para o Fundo de Conservação Estratégica).

Ela contabiliza os três principais danos causados pelo desmatamento —o desmatamento, a degradação dos rios e os efeitos do mercúrio sobre o meio ambiente e as pessoas atingidas — e ajusta o valor a partir de características como tamanho da população afetada, quantidade de peixes contaminados consumidos e o custo de recuperação da área.

Na quinta-feira (30), a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) divulgou um novo relatório sobre o contrabando de mercúrio no Brasil.

"As evidências coletadas sugerem que o mercúrio utilizado na amazônia brasileira tem origem em México, China, Rússia e Tajiquistão, trazido a países vizinhos por meios lícitos e ilícitos", diz o documento.

A partir de informações coletadas sobretudo em apreensões, a agência conclui que o metal entra no Brasil seguindo majoritariamente as rotas do ouro ilegal, por Bolívia e Guiana —em menor escala, passa também pelas fronteiras com Colômbia, Peru e Guiana.

"O valor do quilo de mercúrio em zonas próximas aos garimpos varia entre R$ 3.600 e R$ 6.000", diz a análise. Ele é transportado em garrafas PET, embalagens plásticas ou botijões de gás e vendido na internet e por meio de grupos em aplicativos de mensagem.

Além do contrabando, outra forma de obtenção do mercúrio para os garimpos é por meio de resíduos —por exemplo, de lâmpadas.

No processo de desativação das três fábricas de cloro, o governo brasileiro fechou uma parceria com a Alemanha para que os rejeitos sejam armazenados no país europeu —esse material ainda contém o metal pesado e precisa ser selado para não contaminar o meio ambiente. A ideia é evitar que criminosos possam roubá-lo para utilizá-lo na exploração ilegal do ouro.

"O procedimento inclui a remoção e estabilização do metal, a descontaminação das instalações, o tratamento de efluentes e resíduos e a destinação ambientalmente adequada dos estoques remanescentes. O processo também prevê o monitoramento ambiental e médico-ocupacional e a comunicação com órgãos competentes e comunidades do entorno", diz Maluf.

Nos últimos anos, a quantidade de mercúrio importado para o Brasil caiu drasticamente. Foram 27,5 toneladas que entraram no país legalmente em 2017, quantidade que subiu para quase 50 mil toneladas em 2019, e a, partir de então, começou a declinar.

Passou a 15 mil toneladas em 2022 e12 mil toneladas em 2023 e 2024. Em 2025, ainda não houve registro. Japão, Suíça, Estados Unidos, Índia, Japão, México e Reino Unido são os países que forneceram mercúrio para o Brasil nos últimos dez anos.