segunda-feira, 28 de julho de 2025

'Tenho o poder de mudar a vida das pessoas', diz primeira juíza cadeirante de SP, FSP

 

São Paulo

Para Rebecka Martins Gomes, 28, escrever uma peça jurídica é muito mais do que trabalho. "É um exercício de liberdade, onde eu sinto que não tenho os limites que o meu corpo me impõe", afirma. Empossada no último dia 21, ela é a primeira juíza tetraplégica de São Paulo.

Mesmo esse exercício de liberdade não é simples. Sem controle sobre os movimentos dos dedos, ela digita com as mãos invertidas, usando o dorso. "Eu tenho uma movimentação parcial dos braços, mas não das mãos. Por isso, sou considerada tetraplégica", explica.

Além dela, outros seis juízes com algum tipo de deficiência foram aprovados. O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) afirma que ela é a primeira magistrada cadeirante do estado. Segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), dos quase 19 mil juízes do país, 270 declararam ter algum tipo de deficiência.

Uma mulher sentada em uma cadeira de rodas, sorrindo, enquanto trabalha em um laptop em uma mesa de escritório. Ela está vestindo uma blusa preta e tem cabelo preso. Ao fundo, há armários de madeira e uma parede clara.
Rebecka Martins Gomes, recém-empossada juíza, na Escola Paulista da Magistratura, em SP - Allison Sales/Folhapress

As deficiências físicas e motoras, visuais e auditivas são as mais comuns, mas há casos também de deficiências psicossociais, mentais e intelectuais. Não há informações precisas no levantamento sobre cadeirantes e tetraplégicos.

A paixão pelo direito e o desejo de ser juíza vieram como consequência do acidente que lhe deixou tetraplégica. "Sinto que, como juíza, eu tenho o poder de decidir, de mudar a vida das pessoas", afirma.

Em maio de 2009, quando Rebecka tinha 12 anos, o carro de sua família foi atingido por outro automóvel em uma estrada do Espírito Santo, quando a família viajava para a Bahia. Seu pai, Eduardo, quebrou uma das pernas. A menina, que estava no banco traseiro, atrás do pai, fraturou duas vértebras do pescoço e teve uma lesão na medula. A mãe, Alexandra, e a irmã, Sara, não tiveram ferimentos.

Rebecka precisou ainda ser submetida a uma traqueostomia e fez sessões de fonoaudiologia para voltar a falar. No meio do tratamento teve uma neuropatia grave, que provocou também uma parada cardiorrespiratória.

Ela perdeu o restante do ano escolar e só conseguiu voltar a frequentar as aulas no ano seguinte. "Ela chorava muito de ter de ficar em casa e assim que conseguimos que pudesse sair de casa, sem risco de infecções, demos um jeito para que ela voltasse a estudar", diz a mãe.

O retorno não foi fácil, por mais que a escola tentasse se adaptar às novas necessidades da aluna. No começo, ela passava de duas a três horas nas aulas. Dores causadas por ficar muito tempo sentada e a dificuldade de manter o tronco reto atrapalhavam a rotina.

O apoio das tias maternas e dos amigos de Novo Horizonte, bairro de Serra, na região metropolitana de Vitória, onde a família mora, foram fundamentais. "Tinha sempre um amigo para ficar comigo na sala de aula na hora do recreio ou das aulas de educação física", conta a juíza.

A família se apoiava também na fé. Evangélicos, eles frequentam a Assembleia de Deus, e muitos dos amigos que a ajudavam eram fiéis da mesma igreja.

Com o pai professor de história na rede pública estadual e a mãe dedicada à casa, o orçamento, que já era apertado, ficou ainda mais depois do acidente. A mãe passou a se dedicar mais à filha. "Eu sou motorista, acompanhante, passo a sonda quando ela precisa urinar, faço tudo", diz Alexandra.

Ela também passou a acompanhar a filha na faculdade, em uma instituição particular chamada Multivix. Apesar das dificuldades, ela não quis fazer um curso a distância. "Eu gosto do ambiente da sala de aula."

Na faculdade, Rebecka conheceu um professor que se tornaria sua referência profissional, o juiz Ronaldo Domingues de Almeida, do TJ-ES (Tribunal de Justiça do Espírito Santo). "Eu tinha vontade de ser juíza desde o primeiro ano, mas foi como estagiária dele que eu passei a entender mais do que era a atividade", conta.

Ela continuou a trabalhar com Almeida durante a pós-graduação. "Foi minha aluna por três semestres e o que me chamou a atenção era o quanto era dedicada nas aulas e a qualidade de seus trabalhos", afirma o juiz. "No começo, eu nem sabia que ela era cadeirante. Pensei que a mãe, que estava sempre com ela, era, na verdade, uma colega", conta.

Terminada a faculdade e os estágios, passou a atuar como advogada e usava o dinheiro que recebia para prestar concursos públicos. Fez provas em Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. "A primeira vez que vim para cá foi justamente para fazer a prova", conta, na sala da sede do TJ-SP, onde atendeu a Folha.

"Pegamos dinheiro emprestado para conseguir passar esses dias aqui", conta a mãe, que mais uma vez a acompanha. As duas estão em São Paulo para que Rebecka passe pelo curso em que os novos juízes conhecem melhor o tribunal e seu funcionamento.

Em seguida, ela deve ser nomeada juíza assistente em uma vara até completar dois anos de estágio probatório, a última etapa antes de garantir vitaliciedade como juíza.

"Minha experiência de vida me leva a entender que um problema que parece simples para uns pode ser muito relevante para quem os sofre. Eu sei, por exemplo, o que é ter de me preocupar com acessibilidade quando vou pesquisar um restaurante para jantar ou quando vou escolher um lugar para morar."


Nenhum comentário: