Quem olha o bairro de Santa Cecília, na zona central da cidade, todo impermeabilizado e sem córregos, não pode imaginar que outrora ele foi uma espécie de estância hidromineral. Havia ali um conjunto de chácaras de onde jorravam fontes de água pura, com gás natural e propriedades medicinais que atraiam moradores locais e viajantes em busca de cura para seus males desde meados do século 18.
"Acreditava-se que a água era milagrosa e tinha poderes para tratar doenças do estômago, fígado e problemas de pele, comuns na época", diz o pesquisador e escritor Lincoln Paiva, que resgatou a história no Arquivo Municipal de São Paulo e na Hemeroteca na Biblioteca Nacional. "E o mais interessante é que a crença popular acabou se confirmando." Paiva prepara o lançamento de um livro sobre a cidade nos séculos 16 e 17 chamado "Cosmovisão Paulista" (Editora Afluente), em agosto.
O local onde as fontes brotavam estava onde hoje ficam as ruas Doutor Jaguaribe, Dona Veridiana, Martinico Prado e Aureliano Coutinho. Nessa área, que era o caminho para o município de Jundiaí, havia pelo menos dez mananciais. Diante do grande interesse que o lugar despertava, em 1867, o proprietário de uma das chácaras da região passou a vender água em barris para doentes e curiosos.
Trinta anos mais tarde, o médico Domingos Jaguaribe, especialista em hidrologia médica, decidiu analisar a água no Instituto Pasteur em Paris para confirmar se as crenças tinham fundamento. Segundo Paiva, amostras foram enviadas à França e o laudo técnico confirmou que ela tinha alto teor de enxofre, ferro e bicarbonato de sódio, minerais com reconhecido potencial terapêutico.
Diante da conclusão positiva, Jaguaribe decidiu comprar um grande terreno e instalou ao lado da Santa Casa de Misericórdia seu Instituto Psycho-Physiológico, onde oferecia serviços completos de hidroterapia, eletroterapia, fototerapia e massagem. Ele classificava sua clínica como um "estabelecimento modelo, fundado sob as normas modernas".
Também transformou a água de Santa Cecília num negócio bastante lucrativo. Cobrava mil réis por um banho simples quente ou frio com direito a salão e toalha. Um banho de cachoeira com tanque de natação saia por 800 réis. Já os banhos medicamentosos sulfurosos saiam por 5 mil réis. Ao mesmo tempo, criou sua água engarrafada, a Vitalis, que fez fama no começo do século 20 e era classificada na propaganda como a "Vichy brasileira". A rua Martinico Prado se chamava Vitalis.
Uma circular do Ministério da Fazenda do começo do século 20 autorizava a venda da água mineral da fonte de Santa Cecília, sujeita a imposto de consumo, e a reconhecia como muito sulfurosa e com gás carbônico. A fonte Vitalis chegou a produzir 10 mil litros diários, segundo Paiva, e foi premiada internacionalmente. Sua garrafa era elegante, com um rótulo decorado e lacrada. Era apelidada de "água santa" e consumida pelo Barão do Rio Branco, como mostram os anúncios da época.
Mas a Vitalis sofria com ataques de concorrentes. Em um anúncio encontrado por Paiva, Jaguaribe diz que a Vitalis "é uma potência sujeita às calúnias dos invejosos". Para contrapô-los ele cita os prêmios recebidos pela água nas exposições de Buenos Aires, Anversa, Milão e Rio de Janeiro e cita que foi proclamada a melhor do Brasil no 6º Congresso Médico. Infelizmente, as fontes de Santa Cecília não jorram mais. E o bairro não guarda nenhuma reminiscência desse passado remoto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário