segunda-feira, 21 de julho de 2025

Tabata Tesser - 'Apocalipse nos Trópicos' ignora catolicismo e reforça estereótipos, FSP

 

Tabata Tesser

Mestre em ciência da religião (PUC-SP), é membro do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) da Unicamp

Quem assiste ao documentário "Apocalipse nos Trópicos" (Netflix), de Petra Costa, sai com a impressão de que o Brasil vive, ou viveu, sob uma teocracia evangélica. A narrativa dramatiza a ascensão política das igrejas pentecostais e neopentecostais, apoiando-se em entrevistas inéditas com figuras como o pastor Silas Malafaia e o presidente Lula.

O documentário levanta uma discussão fundamental para compreender o atual cenário político brasileiro, contribuindo de forma relevante para o debate público. No entanto, ao construir um enredo com forte carga simbólica e teológica, peca por omissão, pois é impossível compreender o crescimento político evangélico sem considerar o declínio da hegemonia católica no país.

O catolicismo aparece apenas de forma pontual e simplificada, numa breve citação a dom Pedro Casaldáliga, associado à Teologia da Libertação, como se essa vertente resumisse toda a história e a diversidade do catolicismo brasileiro. Ignora, aliás, que o catolicismo segue sendo, conforme confirmou o Censo 2022, a identidade religiosa hegemônica.

O filme negligencia aspectos fundamentais, como a crise institucional do clero católico, o fechamento de paróquias, a rigidez burocrática da Igreja para expandir sua presença nos territórios e, sobretudo, sua dificuldade em dialogar com novas realidades do mundo do trabalho e da vida urbana. A produção está focado nos evangélicos, é compreensível, mas, ao ignorar esse pano de fundo, deixa de apresentar uma explicação mais complexa e profunda da paisagem religiosa no Brasil.

Além disso, o "Apocalipse nos Trópicos" reforça um dualismo simplista: que os "católicos" são bons porque defendem os pobres e os "evangélicos" são maus porque defendem a "prosperidade", o moralismo e o golpismo. Falta à obra reconhecer que, entre os apoiadores do bolsonarismo e dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, a maioria significativa das presenças era de católicos, muitos deles alinhados a movimentos conservadores ligados à tradição romana.

Outro problema é a forma como a trajetória política evangélica é explicada de cima para baixo, como se o poder da chamada "bancada evangélica" resumisse a influência dessas igrejas. Ao eleger Malafaia como figura central, quase como o "sindicalista" dos evangélicos, o documentário exagera sua influência, ignora o jogo partidário e a complexidade das bases evangélicas: suas múltiplas vertentes, redes de solidariedade, disputas locais em Conselhos Tutelares e espaços participativos —e os múltiplos sentidos da fé em contextos populares. A análise estrutural, territorial e midiática, que ajudaria a entender a força do campo evangélico, simplesmente não aparece.

Por fim, ao adotar uma estética e narrativa apocalíptica, o documentário sugere que vivemos uma distopia religiosa que foi "pausada" com a vitória de Lula em 2022. A metáfora funciona como alerta político, mas deixa de lado nuances fundamentais. Ao não abordar a pluralidade do campo religioso, Petra Costa reforça estereótipos cultivados por parte da esquerda sobre "os evangélicos" e perde a chance de oferecer uma contribuição rigorosa ao complexo debate público sobre religião e democracia no Brasil.

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