[RESUMO] Seminário realizado em aldeia de Pernambuco no intuito de congraçar cientistas e povos indígenas a respeito de estudos clínicos com a jurema-preta, a planta da caatinga, teve resultado bem diverso do esperado. Enquanto os primeiros defenderam ampliar o acesso aos benefícios da planta a milhões de pessoas que sofrem com depressão, os segundos, que veem na jurema uma entidade sagrada, apresentaram torrente de acusações de desrespeito, cobiça e apropriação indevida, cultural e econômica, do saber da natureza e da espiritualidade.
"De tanto levar frechada do teu olhar..." Foi Adoniran Barbosa que o físico e neurocientista Dráulio de Araújo invocou para externar seu estado de espírito no terceiro e último dia do 1º Seminário de Medicinas Ancestrais: Jurema. Os forasteiros presentes entoaram com o pesquisador os primeiros versos da canção "Tiro ao Álvaro".
Não foi pouca a surpresa da maioria de indígenas reunidos em círculo na oca da aldeia Tapera em Orocó (PE), do povo truká. A reunião de conciliação, separada do plenário, havia sido convocada para tentar desfazer algo da tensão que dominara o encontro. Nos dois dias anteriores, cerca de 400 pessoas haviam presenciado uma torrente de acusações de desrespeito e apropriação cultural da Jurema.
("Jurema" vai aqui com J maiúsculo para ressaltar o complexo de entidades, toantes e rituais celebrados em torno da jurema-preta, Mimosa tenuiflora, árvore-mãe no centro da espiritualidade ancestral dos povos do sertão, que seria depois assimilada na religião mestiça do Catimbó, hoje conhecida como Jurema Sagrada.)
"Ficou evidente a necessidade de reafirmar que a Jurema é Sagrada e, para todos/as que desejam compartilhar da vida com ela, preservar e semear ainda mais suas espécies e protegê-la de relações utilitárias ou apropriação indevida constitui-se um imperativo ético", registrou o manifesto adotado na plenária final, oito horas depois da tentativa matutina de apaziguamento na oca.
O seminário havia sido um chamado da própria Jurema, conta o organizador Alexandre Franca Barreto, professor de psicologia da saúde na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Em outubro de 2023, em cerimônia com chá de jurema-preta e arruda-da-síria no Terreiro de Umbanda e Jurema Sagrada Aldeia Pena Branca em Petrolina (PE), sob efeito da substância psicodélica N,N-dimetiltriptamina (DMT) contida na bebida, ele recebeu do alto essa missão. Surgiu assim a ideia de reunir representantes de povos indígenas, de terreiro, de governos e da pesquisa para alinhar "ciências, cuidados e proteção" em torno da Jurema, como dizia subtítulo do seminário.
Bebi a jurema com Alexandre naquela noite de 2023 e compareci por seu convite ao evento de Orocó, para apresentar o livro "A Ciência Encantada de Jurema" (Fósforo, 2025). Nele narro a sessão juremeira de dois anos atrás em Petrolina.
Acompanhei de longe o difícil processo em que ele negociou com os truká e fontes de financiamento os recursos, a logística e o formato do seminário, realizado de 21 a 24 de maio passado. Um seminário que terminou bem diverso de sua expectativa inicial de um grande congraçamento de juremeiros.
A força da jurema-preta
Os truká são um dos vários povos da Jurema do Nordeste. Há pelo menos 6.149 pessoas vivendo no território de 6.272 hectares (62,7 km2), segundo o banco de dados Povos Indígenas do Brasil, mantido pelo Instituto Socioambiental (ISA).
Dezenas de moradores da aldeia Tapera ainda trabalhavam em mutirão para cobrir com varas de taboa a grande oca, fechando as duas águas do teto oblíquo que ia até o chão, dando um formato triangular à construção. Outros instalavam a fiação elétrica para iluminação, internet e aparelhos de som da cerimônia noturna de abertura.
Logo na sessão inicial Ailson dos Santos, o cacique Yssô Truká da aldeia Tapera, pedagogo com mestrado em direitos humanos pela Universidade Federal do Pará (UFPA), fez troça com Alexandre. Disse que ele era muito teimoso, "às vezes deixa a gente aborrecido".
O organizador não indígena respondeu cantando à Jurema do Juremá e pedindo "que a Mãe Jurema possa iluminar todos que estão aqui" (no seminário). Yssô emendou: "Todos têm uma missão —criar uma forma de proteger a Jurema. É um sujeito de direito. É nossa, e está sendo assaltada".
Os representantes de povos indígenas presentes, de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, se revezavam ao microfone para denunciar o alegado contrabando de toras de jurema para países como Holanda e EUA. Lá os poderes curativos da Mimosa tenuiflora estariam sendo objeto de patentes por empresas e pesquisadores.
Vibrava no ar a suposição de que não indígenas estariam ganhando montes de dinheiro com a exploração da jurema-preta. Uma busca com esse nome científico na página Espacenet mantida pelo Escritório Europeu de Patentes indica, afinal, 322 registros.
A maioria das entradas, que incluem pedidos não analisados ou não concedidos, é relativa a aplicações cosméticas. Isso porque a Mimosa tenuifora tem propriedades antimicrobiana, analgésica e adstringente (conhecidas, de resto, até pela medicina tradicional do México, onde a árvore é chamada de "tepezcohuite").
Há outros 21 pedidos de patentes que mencionam o psicodélico DMT. Entre eles estão incluídas solicitações de proteção exclusiva para dispositivos de inalação de extratos vegetais obtidos da jurema-preta ou de outras plantas, como a chacrona da ayahuasca (Psychotria viridis).
A madeira densa da árvore é muito usada por sertanejos na confecção de mourões e carvão vegetal. Também é utilizada por curtumes no beneficiamento de couro, por seu alto teor de taninos (fonte do amargor intenso do "vinho da jurema" de origem indígena), que responderia pelo grosso da utilização de centenas de toneladas de extrato bruto de jurema-preta a cada ano.
É possível comprar pela internet pequenas quantidades de pó de entrecasca da raiz, onde há maior concentração de dimetiltriptamina (DMT). Esta substância é empregada por grupos neo-xamânicos urbanos tanto para bebidas psicodélicas quanto para a changa, cristais que podem ser fumados para obter o mesmo efeito.
Apesar de mobilizar volumes menores, se comparados às toneladas demandadas pelo uso da madeira, é a notoriedade recente do potencial antidepressivo da DMT da jurema-preta que preocupa povos indígenas e de terreiro cultuadores do vegetal. Eles temem uma invasão das aldeias por mochileiros em busca de experiências ancestrais, dos mistérios da Jurema e de viagens triptamínicas.
Pai João Bosco, do Terreiro Aldeia Pena Branca em Petrolina, alertou no seminário para o embranquecimento da Jurema. Ele suspeita que ocorra com ela o acontecido no início do século 20, quando a macumba carioca e o calundu se tornaram mais aceitáveis para a classe média branca do Rio de Janeiro após sincretização com o kardecismo que forjou a umbanda oficial.
"Vejo a Jurema muito próxima disso", profetizou, apontando o exemplo do enredo sobre o quilombola encantado Malunguinho que a escola de samba Viradouro apresentou no carnaval do Rio neste ano. Para ele, o risco de ruptura e desrespeito com tradições ancestrais aumenta quando cristais de DMT de jurema-preta passam a ser fumados em raves para dar barato, motivando perseguição policial a juremeiros como se fossem traficantes de drogas.
"Nossa ciência é oculta", arrematou Anália Tuxá. "Fui educada para não dizer tudo, porque, no dia que revelarem [os segredos], vão perder sua cultura e sua história, meu pai me ensinou."
Segredo como estratégia de sobrevivência
As práticas ancestrais da Jurema sempre foram envoltas em segredo, por força da repressão movida desde pelo menos os séculos 17 e 18. Para a Igreja Católica e sua Inquisição, os "adjuntos de jurema" constituíam uma forma demoníaca de feitiçaria.
Rituais eram praticados na mata ou no recôndito das ocas, ao som de maracás e muita fumaça expelida de cachimbos cônicos chamados de campiôs ou quaqüis. Sob o peso de séculos de escravização, miscigenação e extermínio, dezenas de povos originários do Nordeste chegaram ao século 20 dados como extintos, mas a sobrevivência da Jurema prova que a raiz indígena nunca foi de fato extirpada.
Em realidade, essa prática talvez remonte a milênios atrás. É o que sugere análise do arqueólogo Guilherme Medeiros, da Univasf, de algumas pinturas rupestres características da Tradição Nordeste em sítios como os da Serra da Capivara (PI). Para ele, as figuras humanas que dançam nelas ao redor de árvores podem representar um tipo de culto às plantas (fitolatria).
Dos povos indígenas do Nordeste, só os fulni-ô foram capazes de manter sua língua, o iatê. Mas o culto da Jurema permaneceu vivo no sertão e mesmo no litoral, tornando-se na segunda metade do século passado um indicador de "indianidade", ao lado da realização de torés (dança festiva), para qualificar os povos ao reconhecimento cultural e à reivindicação de territórios tradicionais.
Surgiu daí, na força da Jurema, a retomada de terras que antropólogos denominaram reemergência étnica. Nesse processo conflituoso não faltaram atentados contra lideranças indígenas como Yssô, que levou três tiros em 2016. Menos sorte teve Chicão Xucuru, cacique assassinado em 1998 (seu filho e sucessor, Marcos, assim como a viúva, Zenilda, estiveram no seminário em Orocó).
Entre os Censos de 2010 e de 2022, a população indígena no Nordeste mais que dobrou, para 530 mil pessoas. É o segundo maior contingente regional do Brasil, depois do Norte (Amazônia).
São 238 etnias, com 90% dos integrantes morando fora de terras indígenas reconhecidas (631, das quais apenas 105 já demarcadas). Uma população que poucos brasileiros reconheceriam como indígenas, pois não se encaixa no estereótipo de índios nus ornados de penas flechando macacos na floresta tropical.
Ainda na fase da resistência anticolonial ocorreu intenso contato e intercâmbio com escravizados africanos. Por exemplo, nos aldeamentos de jesuítas e outras ordens e nos quilombos e mocambos para os quais negros e nativos fugiam.
"Zumbi encontrou a serra da Barriga por acaso? Não, foram os índios [que lhe indicaram o refúgio]", disse no seminário Pai Alex Gomes, juremeiro e babalorixá de Arapiraca (AL).
Os pretos passaram a reverenciar os ancestrais divinizados da nova terra, assim como indígenas foram assimilando entidades afro-brasileiras como orixás e pretos-velhos, dos quais se ouvem até hoje ecos em toantes cantadas em rituais indígenas.
Desse encontro, acrescido de elementos da magia ibérica e do catolicismo popular que vicejava no sertão, nasceu o catimbó. Uma prática que a sociologia das religiões relegou por décadas como manifestação degradada da umbanda, como se lê nos escritos de um Roger Bastide fascinado com a opulência do candomblé.
Só a partir dos anos 1970 o catimbó entraria no radar de uma leva de antropólogos e sociólogos, tendo René Vandezande como um dos pioneiros. Depois viriam Rodrigo Grünewald, que pesquisou a Jurema entre os atikum, Luiz Assunção, Sandro Guimarães de Salles, Estêvão Palitot, Dilaine Sampaio e outros, estudando essa religiosidade mista praticada em aldeias ou terreiros urbanos.
Antes deles, o folclorista Luís da Câmara Cascudo publicara em 1951 um livro inteiro sobre catimbó, "Meleagro", com base em pesquisas que iniciara ainda nos anos 1920. Foi ele o cicerone de Mário de Andrade na viagem de 1928 a Natal, em que o paulista teve seu corpo fechado por catimbozeiros no bairro da Redinha, como descrito nos livros "Música de Feitiçaria no Brasil" e "O Turista Aprendiz".
O catimbó/Jurema é uma religiosidade fluida, mestiça e flexível, que só se transmite oralmente. Varia muito de áreas do sertão para as do litoral, de terreiro para terreiro, de aldeia para aldeia.
Em comum se cultuam nesses locais mestres e mestras, seres encantados que em vida se destacaram por obras com a Jurema. Após "fazer a passagem", vão morar em cidades e estados ou reinos, como Juremá e Bom Florar, cuja lista também muda de local para local. Os seres encantados baixam nos médiuns em giras, que podem ou não contar com o vinho da jurema, em geral sem efeito psicodélico.
Essas entidades se manifestam no mundo cotidiano para trabalhar, como se diz, auxiliar as pessoas que comparecem às cerimônias em busca de conselhos, ajuda espiritual, remédios para males de saúde, desmanche de feitiços —ou mesmo encomenda de algum. É o que se denomina de trabalhos de "esquerda", prática que juremeiros costumam repudiar, ao menos perante jornalistas.
O panteão de encantados é interminável: Mestre Carlos, Zé Pelintra, Manuel Cadete, Maria Padilha, Malunguinho, Luziara, Canindé, Cabocla Jurema, Sultão das Matas, Caboclo Aboiador e tantos outros. Alguns podem comparecer também em sessões de umbanda.
Uma das mais célebres é Maria do Acais, que em verdade são duas. A primeira, Maria Gonçalves de Barros, foi a irmã do último "regente dos índios" e pajé Ignácio Gonçalves de Barros em Alhandra, cidade paraibana que se originou de um antigo aldeamento indígena.
Com a morte da primeira, em 1910, volta de Recife para Alhandra Maria Eugênia Gonçalves Guimarães, a segunda Maria do Acais, herdeira da fazenda de mesmo nome na cidade que se tornaria conhecida como a meca da Jurema. Apesar de tombada em 2009, a sede da propriedade acabou demolida, restando só a capela de São João Batista, nas margens da rodovia PB-034, antiga Recife-João Pessoa.
Alguns juremeiros dizem que Maria do Acais ainda baixa nas giras, outros refutam essa possibilidade de modo terminante. Existe ainda discórdia sobre a obrigatoriedade de reclusão, batismo, sementação e outros ritos de iniciação, ou sobre a lista correta de cidades e reinos onde vivem os encantados, sobre o culto de Exu, sobre as roupas que se devem usar nos terreiros —chita, cetim, rendas...?
Todos concordam, contudo, num ponto fundamental: o vinho da jurema não precisa ter efeito psicodélico para desencadear o transe dos médiuns que recebem mestras e mestres. Em algumas sessões mediúnicas a bebida nem chegou a ser servida.
Muitos preferem chamar a beberagem de "medicina", ou recorrendo ao neologismo "enteógeno" (significando algo como facilitador do divino interno). É uma maneira de desvincular o vinho do recente entusiasmo com a renascença psicodélica.
Iracema, Araquém e Jurema
O composto psicodélico DMT está presente na entrecasca da raiz da Mimosa tenuiflora em concentrações ainda maiores que nas folhas da chacrona usadas para fazer a ayahuasca, ou daime.
No caso do chá de origem amazônica o material foliar é cozido junto com o cipó mariri, ou jagube (Banisteriopsis caapi). Ele fornece substâncias inibidoras de enzimas do trato digestivo capazes de degradar a DMT e, assim, impedir a chegada do psicodélico ao cérebro.
Certo é que o vinho da jurema pode ter efeito similar ao da ayahuasca, como se supõe da correspondência da capitania de Pernambuco ao rei português dom João 5º, em 1741, sobre "bebidas, as quais chamam jurema, ficando com elas loucos e com visões".
Mais de um século depois, em 1865, José de Alencar narraria no romance "Iracema": "Araquém decreta os sonhos a cada guerreiro e distribui o vinho da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara".
Não se sabe ao certo o que povos indígenas do Nordeste utilizavam como inibidor no passado e tampouco se conhece se, o que e como usam hoje em dia. As receitas do vinho são objeto de sigilo inquebrantável até para pajés e caciques, restrito aos mestres vocacionados que fazem a extração da raiz e preparam a bebida.
"Só conheci dois juremeiros até hoje", contou no seminário Neguinho Truká, irmão de Yssô e líder da aldeia-mãe de seu povo em Assunção, ilha do rio São Francisco, que chamam de Opará. "Eu, cacique, não posso tocar na jurema sem autorização do juremeiro."
Em 1942, o químico pernambucano Oswaldo Gonçalves de Lima visitou em Jatobá (PE) uma aldeia do povo pancararu. Presenciou o chefe indígena Serafim Joaquim dos Santos preparar a bebida, espremendo fibras da raiz macerada em água fria que se tornou vermelha.
Em seguida o cacique traçou sobre o vasilhame uma cruz de fumaça soprada pela ponta estreita do campiô (cachimbo cônico), com a boca sobre o fornilho onde se põe o fumo, como Gonçalves de Lima descreve no artigo "Observações sobre o ‘vinho da Jurema’ utilizado pelos índios pancarú de Tacaratú (Pernambuco)", publicado em 1946 nos Arquivos do Instituto de Pesquisas Agronômicas. Ali ouviu cantar a seguinte toante:
Meu jucazinho
De onde vens
Eu venho do mundo
Do mundo eu venho
Eu venho pintando
Venho ramaiando
Venho implorando
Da casa do Senhor Mestre
Ai Senhor da Senzala
Os relatos dos pancararu (que o autor grafa "pancarú") sobre os efeitos do vinho da jurema convenceram o químico da existência de "fenômenos mentais de natureza tóxica" comparáveis aos do haxixe, da maconha e do peiote. Gonçalves de Lima menciona várias passagens da literatura médica que falam de alucinações provocadas pela bebida.
Amostras da raiz obtidas na aldeia foram levadas para seu laboratório no Recife, onde processos químicos revelaram a presença no vinho de um alcaloide que batizou como nigerina (alusão à cor negra do tronco da jurema-preta). Anos depois se verificaria que se tratava da mesma substância DMT que havia sido sintetizada em 1931, no Canadá, por Richard Manske.
Só em 1956 o psiquiatra húngaro Stephen Szara comprovaria o efeito psicodélico da DMT da jurema-preta injetando no próprio corpo uma dose da forma sintética do composto.
A dimetiltriptamina, entretanto, não se encontra só na Mimosa tenuiflora, que na época de Gonçalves de Lima ainda era classificada como Mimosa hostilis. O composto e algumas variações dele estão presentes em dezenas de espécies animais, fúngicas e vegetais, sendo a mais notória a chacrona com que se prepara a ayahuasca.
Mais ainda: a DMT também está presente no cérebro de mamíferos, inclusive humanos. Ou seja, ela é endógena, o que reforça a ideia de que seu eventual uso como medicamento seria relativamente seguro.
No Brasil como em outros países, a DMT é uma substância proibida. Mas não a ayahuasca, autorizada para uso religioso, o que facilitou por aqui a pesquisa com o chá.
Um dos centros em que se estudam as propriedades do chá está na USP de Ribeirão Preto. Ali Dráulio de Araújo, o neurocientista da "frechada", participou de pesquisas sobre áreas visuais do cérebro ativadas pelo chá e sobre seus efeitos antidepressivos.
Depois de mudar-se para o Instituto do Cérebro da UFRN, liderou um pioneiro teste clínico controlado por placebo com 29 voluntários, publicado em 2018, comprovando sua eficácia contra depressão resistente a tratamento. Até meados de junho, o artigo havia angariado 643 citações de outros pesquisadores, um indicativo de grande repercussão na literatura especializada.
Cada sessão com ayahuasca dura pelo menos quatro horas, tempo em que o paciente deve ficar sob supervisão de profissionais de saúde. Isso geraria um alto custo de atendimento, que na prática inviabilizaria seu uso em clínicas para a população geral.
O grupo de Dráulio, Fernanda Palhano-Fontes, Marcelo Falchi-Carvalho, Emerson Arcoverde e Nicole Galvão-Coelho passou a investigar então uma alternativa mais breve, a inalação de DMT purificada. Neste caso o efeito psicodélico dura apenas cerca de dez minutos.
Mesmo assim, também produz benefício antidepressivo sustentado, por até três meses, como demonstrou artigo publicado em abril passado. A DMT utilizada fora extraída não da chacrona ou do daime, e sim de raízes de jurema-preta colhidas em Quixadá (CE), na fazenda do pai de Dráulio.
A invocação científica da Jurema
Dráulio apresentou sua pesquisa no seminário de Orocó como um chamado do sertão. O pesquisador acentuou para os truká e outros indígenas sua condição de cearense que passava férias na fazenda Logradouro, cresceu em Brasília, pesquisou no interior paulista, morou nos Estados Unidos e retornou de vez ao Nordeste.
O estudo clínico de fase 2 com a DMT da jurema-preta seria um passo necessário, em seu otimismo bem-intencionado de cientista, para ampliar o acesso aos benefícios dessa medicina da caatinga a milhões de pessoas que sofrem com depressão e não encontram lenitivo nos antidepressivos do mercado.
Explicou que o estudo no ICe-UFRN não tem por objetivo desenvolver pílulas ou cápsulas de jurema-preta para lucro de empresas farmacêuticas, e sim divulgar para o mundo um tratamento rápido e simples capaz de facilitar o processo terapêutico. É o que se chama de psicoterapia apoiada por psicodélico, PAP, como nos testes de fase 3 com a psilocibina de cogumelos, também contra depressão, e de MDMA, ou ecstasy, para transtorno de estresse pós-traumático.
Não adiantou muito. Vozes predominantemente femininas se levantaram no plenário para questionar a ingerência nos segredos da jurema. Claudete Silva Barboza, conhecida como Cláudia Truká, foi a mais dura: "A Jurema é meu corpo, o corpo da comunidade, dos povos indígenas", bradou. "Perguntaram para a Jurema se ela quer seu corpo estraçalhado num laboratório? É preciso amadurecer esse processo."
Edna Bezerra Pajeú, a líder Edna Truká, casada com o cacique Yssô, lamentou a cobiça dos caraí, os não indígenas que querem se apropriar de tudo. Elaine Patrícia de Sousa Oliveira, a Patrícia Pankararé, ressalvou que nunca teve curiosidade de saber como se faz a jurema: "Eu gosto [só] de tomar a jurema, vamos com o vento", disse. "De tudo a natureza nos dá, mas nem tudo pode pegar."
Eliene dos Santos Rodrigues, a Putira Sacuena do povo baré, diretora de atenção primária na Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, falou do incômodo com a arrogância dos cientistas: "Quem disse que a Jurema não é científica para nós? A academia tem de entender o que é ciência para nós".
Ciência da Jurema é como povos originários do Nordeste chamam o conhecimento oculto de que falava An ália Tuxá mais atrás, um saber esotérico restrito a indígenas e transmitido apenas oralmente. Algo extraordinário, como frisou Elisa Pankararu, "o que os antepassados observaram que acontecia".
Já a ciência praticada nas universidades é um saber exotérico, ou seja, pressupõe a divulgação dos achados. Como resumiu jocosamente o xakriabá Uwira, "pesquisador é um bicho curioso e fofoqueiro, que não se contenta em analisar as coisas e sai espalhando por aí o que descobriu".
O médico da Universidade Federal de Ouro Preto Ricardo Moebus, que mediou painel com Uwira e o neurocientista Sidarta Ribeiro, da UFRN, recorreu à cobertura da grande oca: "A ciência iluminista joga luz. A taboa nos dá sombra. Jogar luz pode ser pior", ponderou. "Há necessidade de espaços de sombra. Uma sombra de dúvida pode ser melhor que o sol escaldante das certezas."
Para Sidarta, há divergências muito profundas entre as cosmovisões de ameríndios e ocidentais. "Para a ciência [de não indígenas], nada é sagrado, nada tem alma", disse. "A gente está apenas começando essa conversa. Nós, caraí, vamos precisar de muita humildade."
O conjunto dessas falas sensibilizou Dráulio, colega de Sidarta no ICe-UFRN. Ele respondeu aos questionamentos ressaltando o benefício potencial para milhões de deprimidos. O neurocientista procurou Cláudia Truká para se desculpar, pois considerou ter sido acusado de profanação.
Ele anunciou que passaria a privilegiar estudos com a DMT sintetizada, em lugar da jurema-preta, para investigar sua aplicação terapêutica. Algo comparável ao "freio de arrumação" descrito pelo psiquiatra da Unicamp Luís Fernando Tófoli no seminário, que abandonou estudos sobre o daime após a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, realizada em janeiro no Acre, por não se sentir autorizado.
A busca por uma linguagem franca
A tensão dominante nesse início de conversa entre povos indígenas e de terreiro, de um lado, e pesquisadores, de outro, provém em certa medida da profusão de sentidos veiculados no vocábulo "jurema".
Escrito com maiúscula, enfeixa vários significados: a bebida sacramental, a religião Jurema Sagrada, a árvore-mãe dos indígenas, a Cabocla Jurema e a ciência de mesmo nome —complexo cultural que o manifesto do seminário propõe tombar como patrimônio imaterial. Em minúscula, jurema-preta designa a Mimosa tenuiflora da pesquisa científica.
Qualquer investigação científica sobre a segunda tende a ser vista por juremeiros como uma violação da primeira, um desrespeito e uma tentativa de apropriação indevida, cultural e econômica, da planta que está no fulcro de sua espiritualidade.
A DMT isolada, por outro lado, não se confunde com a Jurema nem com seu segredo. São os próprios juremeiros a ressalvar que o psicodélico não é imprescindível para encantados baixarem na terra a fim de trabalhar, ou seja, ajudar pessoas que sofrem.
Diminuir o sofrimento é bem o objetivo de pesquisadores como Dráulio, Fernanda, Emerson e Nicole. No mais, trata-se de um composto químico ubíquo na natureza, que não é exclusivo da jurema-preta e pode ser detectado em incontáveis organismos.
Mais uma razão, aliás, para pressupor que não possa ser patenteado como tal. O que não exclui que empresas e universidades busquem essa proteção de propriedade intelectual para modificações voltadas a aperfeiçoar a molécula como medicamento, ou para dispositivos e protocolos de tratamento que o utilizem.
Nesses casos, parece legítimo que povos ayahuasqueiros e juremeiros busquem o reconhecimento de seu saber tradicional associado ao recurso genético. E, igualmente, a repartição de benefícios com eventuais rendimentos obtidos dos produtos.
Por outro lado, o crescente interesse de pesquisadores e do público pelo potencial terapêutico da DMT pode, sim, deflagrar uma voga de turismo xamânico nas aldeias. Ou, ainda, estimular uma revoada de jovens indígenas para oferecer as chamadas vivências em grandes centros urbanos. Ou mesmo intensificar a extração de raízes de jurema-preta para comercialização ilegal do pó, de extratos ou de changa.
Nas duas primeiras hipóteses, há risco óbvio de perturbação da vida tradicional nas aldeias e desvirtuamento de rituais. Assim ocorreu nos anos 1960/70 em Huautla, México, quando o lugarejo se converteu em local de peregrinação de hippies em busca dos cogumelos "mágicos" revelados ao mundo branco por uma reportagem na revista Life sobre a curandeira Maria Sabina.
Algo que talvez pudesse ser evitado com regras a serem criadas por uma comissão de juremeiros indígenas e de terreiro similar ao Conselho de Lideranças Indígenas adotado na 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca. Os xucuru, por exemplo, estão debatendo um protocolo para disciplinar visitas às aldeias, informou o cacique Marcos.
No terceiro caso, a maior ameaça de sobrevivência à espécie Mimosa tenuiflora claramente não está na extração de DMT, mas na acelerada devastação do bioma caatinga pelo agronegócio. E, secundariamente, no corte para obtenção de tanino usado em curtumes e no costume sertanejo de usar a madeira da jurema-preta para fabricar estacas de cercas e carvão vegetal.
Questionados após o seminário, lideranças indígenas reconheceram o desmatamento como perigo principal para a Jurema. Destacaram a ameaça bem à frente da curiosidade psicodélica.
Outro risco contemplado no manifesto é o de juremeiros serem presos por posse e transporte do vinho cerimonial, uma vez que a bebida contém a substância proibida DMT. Aqui, é previsível que pesquisas clínicas de seu potencial terapêutico se tornem o maior argumento para criar salvaguardas ao direito de ir e vir com o sacramento, como ocorreu com a ayahuasca.
"Apesar dos momentos de tensão, me parece que há vontade de continuar essa conversa, como demonstra a proposta de um novo encontro no próximo ano", concluiu Fernanda Palhano-Fontes, do ICe-UFRN, que montou com Dráulio, durante o seminário, oficinas de neurociências para os truká e demais povos (houve também oficinas de agroflorestal para os moradores).
"Minha impressão é que, por não existirem tantos espaços como esse, há também muitas falas represadas e um certo nível de desinformação de ambas as partes."
Com ela parece concordar Edna Truká. "A gente quebrou dogmas nesse seminário, a gente quebrou crenças que nos limitavam, tabus, muitas correntes que nos aprisionavam como pessoas e nos distanciavam. Éramos pessoas presas nas nossas caixas, com receio de sair do nosso campo, de conhecer o campo do outro, automaticamente construindo concepções errôneas e equivocadas."
Além de Dráulio, o organizador Alexandre Barreto também saiu tocado, mas não desanimado, do seminário em terra truká. "Nego Bispo dizia que, quando um rio confluía com outro rio, ele não deixava de ser o rio, apenas se expandia e ampliava", ressalvou.
"O diálogo começou bem, pois do contrário não sairíamos com um documento construído de forma coletiva e uma agenda para seguir aprofundando a conversa."
Dráulio concorda. "O diálogo começou de forma honesta, o que não significa necessariamente que foi tranquilo. As tensões expressas durante o seminário refletem um acúmulo histórico de invisibilização, apropriação, e [falta de] proteção da Jurema", destacou.
"Ao mesmo tempo, o fato de essas tensões terem vindo à tona com clareza já é, em si, um avanço. Não foi um diálogo norteado pela ausência de conflito, mas pela disposição de escutarmos verdades difíceis e permanecermos na conversa."
"Viemos resgatar aqui uma amizade que precisava ter sido costurada 500 anos atrás", lamentou o cacique Neguinho. Seu irmão, Yssô, disse que "a nossa Mãe Jurema" não é propriedade do povo indígena, nem do povo de terreiro, nem dos pesquisadores: "A Jurema é da humanidade, de quem se ilumina e faz bom uso dela".
Para Elisa Pankararu, por ser um primeiro evento, os presentes no seminário se depararam com o desconhecido, mas o maior inimigo viria do passado, do preconceito de que no sertão não existe ciência, só "um povo magro, feio e faminto".
Ela vaticinou: "Talvez nós, os cientistas, sejamos essa comunicação, esse transporte para o bem maior, para o bem da humanidade, começando, óbvio, pelo nosso lugar de fala".
No último dia do seminário, os truká realizaram no terreiro em frente à oca um toré, dança cerimonial que entrou pela madrugada, terminando às 3h. Dráulio conta que tomou três copos de vinho da jurema-preta (sem experimentar efeito psicodélico).
Apaziguado pela celebração e por alguns banhos nas águas transparentes do Opará/São Francisco, talvez ainda ecoasse em sua memória a toante indígena cantada no primeiro dia de palestras: "Na mão direita eu pego a flecha / Na outra eu pego o anjucá [vinho da jurema]".
Mas a ferida das flechadas e dos olhares disparados ainda estava lá, como ao invocar Adoniran Barbosa na reunião pela manhã. Naquele círculo de conciliação, depois de ouvir os queixumes cantados ou proferidos pelos visitantes, Yssô disse que eles não tinham entendido nada.
Os cientistas não tinham sido flechados, o cacique afirmou, mas sim abraçados. O povo truká de Tapera os acolhera como parentes em seu território.
Foi mais uma evidência de que juremeiros e cientistas não falam a mesma língua. Ainda.
O jornalista participou do 1º Seminário de Medicinas Ancestrais: Jurema a convite dos organizadores, que custearam parcialmente transporte, hospedagem e alimentação
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