segunda-feira, 28 de julho de 2025

A falta de racionalidade econômica nas decisões do Judiciário, Cecília Machado ,FSP

 Em 2024, uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) declarou inconstitucional a carência de dez contribuições mensais para que trabalhadoras autônomas pudessem ter direito ao salário-maternidade. Com isso, as mulheres poderão receber o benefício com apenas uma única contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). A decisão começa a surtir efeitos este ano, resultando em despesa adicional de R$ 12 bilhões já em 2026.

Em tempos de discussão acirrada sobre a necessidade de contenção dos gastos, sobre a sustentabilidade fiscal e sobre a solvência do governo, causa estranheza que esta decisão do Supremo possa seguir adiante sem maiores considerações sobre seus impactos no Orçamento público e sobre as consequências econômicas que dela decorrem.

Decisões de execução de gastos tomadas pelo Judiciário são incapazes de internalizar que recursos públicos têm custo de oportunidade. Isto é, que podem ter destinos alternativos, em políticas de maior priorização ou de maior custo-efetividade. Quando o Judiciário decide a alocação do Orçamento para o salário-maternidade, ele indiretamente também decide que haverá menos recursos para outras políticas públicas, que o governo precisará arrecadar mais, ou então que a dívida irá aumentar. A aritmética fiscal é clara com relação às alternativas.

A imagem mostra uma sessão do Supremo Tribunal Federal do Brasil. Há várias pessoas sentadas em cadeiras, algumas delas em trajes formais, em um ambiente com paredes claras e um grande painel de madeira ao fundo. A bandeira do Brasil está visível, assim como um crucifixo na parede. Em frente a alguns dos participantes, há telas exibindo imagens de pessoas que estão participando remotamente da sessão.
Plenário do STF durante julgamento - Antonio Augusto - 18.set.24/Divulgação STF

O STF alega inconstitucionalidade com base no argumento de isonomia: se trabalhadoras com carteira assinada recebem o salário-maternidade sem carência, as autônomas também deveriam recebê-lo. Mas faz sentido equiparar formas de trabalho tão diferentes para o recebimento deste benefício?

Nesta avaliação, é importante voltar à pergunta fundamental que deveria dar origem a qualquer política pública: afinal, o que se pretende alcançar com uma política de salário-maternidade?

O salário-maternidade é uma política de licença na qual a mãe trabalhadora continua recebendo salário durante o afastamento que ocorre após o nascimento do filho. Tais políticas têm objetivo claro: preservar o vínculo trabalhista das mães. O retorno após o afastamento preserva os investimentos construídos em uma relação trabalhista, e todos ganham: as empresas, com o retorno de trabalhadoras produtivas, e as mães, que dão continuidade às suas carreiras após a licença.

Mas no trabalho autônomo, qual vínculo se pretende manter? Nesse modelo, o trabalhador presta serviços ou vende produtos de forma independente, sem estar sujeito à um empregador específico. A justificativa para a existência de um salário-maternidade é um vínculo entre trabalhador e empresa, mas ela inexiste no trabalho autônomo.

Não é à toa que, ao redor do mundo, políticas de licença-maternidade exigem alguma carência. Nos EUA, a licença parental —não remunerada— exige vínculo de trabalho de pelo menos 12 meses e de pelo menos 1.250 horas trabalhadas nos 12 meses anteriores à licença. A carência também está presente em países com políticas de licença mais generosas, a exemplo da Suécia. Lá, o benefício está atrelado a renda do trabalho (com benefícios que chegam a até 80% do salário) para aquelas com vínculo nos 240 dias (consecutivos) anteriores ao nascimento. Já para as mães com menos tempo de trabalho, o recebimento é de uma renda básica, com características mais assistenciais.

Em termos práticos, a decisão do STF vai além das autônomas, já que a contribuição ao INSS é opção de escolha. Qualquer mulher pode fazer uma contribuição e se qualificar para o salário-maternidade. Neste sentido, a decisão do Supremo transforma uma política direcionada ao emprego de mulheres que se tornam mães em uma política de renda assistencial para todas as mães.

Esta decisão gera importantes distorções econômicas. Mulheres de baixa renda ou de menor escolaridade podem enfrentar maiores dificuldades para tomar conhecimento das regras e fazer a contribuição para se tornarem elegíveis ao benefício. No Bolsa Família, o benefício nutriz, pago em seis parcelas de R$ 50 nos primeiros meses de vida de um bebê, é irrisório comparado ao valor das quatro parcelas do salário-maternidade, em R$ 1.518 ao mês.

Pode até ser que se deseje estabelecer um auxílio para todas as mães com filhos recém-nascidos. As vantagens são inúmeras: a permanência das mães com seus recém-nascidos fortalece vínculos, e a renda recebida reduz o estresse materno e aumenta a segurança alimentar das famílias em situação de vulnerabilidade. Mas sendo este o caso, é preciso direcioná-la a quem precisa, tornando-a assistencial, sem relação com o mercado de trabalho e muito menos com o salário mínimo.

Ao remover a carência para o acesso das autônomas ao salário-maternidade, o STF transforma uma política de fomento ao trabalho em uma política de assistência universal, sem focalização, de elevado custo fiscal, e com pouca racionalidade econômica.

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