segunda-feira, 14 de julho de 2025

O colapso da justa indenização: o desafio do STF e o risco da Selic nas dívidas civis, FSP

 Leonardo Amarante

Advogado especializado em responsabilidade civil e direito do consumidor, fundador e sócio do escritório Leonardo Amarante Advogados Associados

Um grave retrocesso no direito civil brasileiro pode estar em curso com a recente decisão da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reconheceu a taxa Selic como índice de atualização para as dívidas civis. Essa medida ameaça os princípios da justa indenização e da reparação integral do dano, pilares da responsabilidade civil no país. O tema, pacificado há anos, será agora debatido no Supremo Tribunal Federal (STF).

Não se trata de um detalhe, mas da efetividade da justiça para milhões de brasileiros que litigam contra bancos, seguradoras, incorporadoras, planos de saúde e companhias de transporte.

A aplicação da Selic como fator único de atualização permite que a inflação corroa o valor das indenizações e que o devedor se beneficie da demora processual devido aos juros negativos, onde a volatilidade da Selic pode diminuir o montante. Criada para política monetária e para dívidas tributárias, a Selic não tem o mesmo efeito compensatório do sistema tradicional de juros de 1% ao mês mais correção.

A substituição desse modelo, que busca recompor os danos de forma justa e integral, pode levar a um cenário em que, quanto mais o processo se alonga, menor se torna o valor a ser pago à vítima.

O ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso no STJ, alertou para a "aberrante situação de juros negativos", que premiaria a litigância abusiva e criaria insegurança jurídica. Seu voto foi vencido em placar apertado e a tese da Selic foi acolhida sob o argumento de que os juros de 1% ao mês são "elevadíssimos".

Luis Felipe Salomão, ministro do STJ - Pedro Ladeira - 5.abr.24/Folhapress

O impacto dessa decisão é evidenciado pelo caso da senhora Zilda Neves da Silva Ferreira, doméstica incapacitada após um acidente de ônibus em 2013. Seu direito à indenização foi reconhecido, mas a empresa recorreu. O caso tornou-se um símbolo nacional sobre a atualização de dívidas civis.

Agora, depende do entendimento do STF, com recurso admitido por violação de princípios constitucionais, como a reparação integral do dano e a dignidade da pessoa humana.

Zilda Neves da Silva Ferreira, que perdeu a capacidade de se locomover sozinha após se ferir em ônibus municipal em São José do Rio Preto (SP)
Zilda Neves da Silva Ferreira, que ficou sem capacidade locomotora após se ferir em ônibus municipal em São José do Rio Preto (SP) - Arquivo pessoal

O Supremo deverá decidir se a taxa Selic, com seu cálculo de "soma de acumulados mensais", é capaz de garantir a recomposição dos danos ou se compromete esse direito.

Em 2020, decisão similar do STF no âmbito trabalhista afastou juros, aplicando exclusivamente a Selic para créditos trabalhistas. Os efeitos ainda são sentidos e aguardam julgamento.

A distinção entre juros de mora, que penalizam o inadimplemento, e correção monetária, que preserva o valor da moeda, é fundamental. Eliminar ou reduzir esses componentes sob pretexto de simplificação ou alinhamento ao mercado financeiro representa um golpe contra os credores, geralmente as vítimas de danos.

Estamos diante de um possível colapso na noção de justiça. O STF tem a missão de resgatar os princípios constitucionais que regem a reparação dos danos: integralidade, dignidade, proporcionalidade e razoabilidade. Caso contrário, assistiremos à maior deformação do Código Civil desde 2002, e a Justiça deixará de cumprir seu papel, legitimando a impunidade.

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