quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Só quem tem alma pode contar o tempo, Sergio Rodrigues, FSP

 1º.jan.2025 às 16h08

Mais um ano está começando, e de novo a maior parte da humanidade vai ignorar aquela pequena parcela de realistas desencantados —também chamados de cínicos— que aponta a arbitrariedade dos inícios e dos fins numa linha do tempo em que todos os dias são iguais.

Acontece que, nesse caso, a maioria tem razão. Quem diz que todos os dias são iguais não leva em conta a necessidade humana de contar histórias a fim de dar sentido à escala desmesurada e opressiva —numa palavra, inumana— do tempo cósmico.

Como observa o crítico Frank Kermode no livro "O Sentido de um Fim", cabe às histórias que inventamos, com seus marcos temporais atravessados de cultura, dar sentido ao intervalo entre início e fim, transformando Chrónos, o tempo infinito e amorfo dos gregos, em Kairós, o momento cheio de significado.

A imagem mostra um espetáculo de fogos de artifício iluminando o céu noturno, com explosões de cores como rosa e roxo. A cena é refletida na água, e uma grande multidão pode ser vista na praia, observando o show. Estruturas e barracas estão visíveis na parte inferior da imagem.
Queima de fogos para comemorar o Ano-Novo na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

virada do ano, em que se encontram o início e o fim do giro que a Terra descreve em torno do Sol, é por isso mesmo a mais significativa das marcas que nossa espécie se acostumou a salpicar no calendário, em vermelho ou em negrito, a fim de assinalar certos dias no mar indistinto dos dias.

A palavra ano veio do latim "annus", uma das descendentes do prefixo grego "amphi", isto é, "em torno, à volta". Isso faz do ano um parente distante de outros termos em que está presente a ideia de círculo, de algo que circunda, que envolve por todos os lados —como ambiente, anfiteatro, ânus e anel, entre outros.

Essa ambivalência (mais um parente de ano) de início e fim se materializa de modo inequívoco no próprio batismo do mês que está começando. Janeiro deve seu nome ao deus romano Jano, entidade de duas caras, capaz de olhar ao mesmo tempo para o passado e para o futuro —ou para dentro e para fora, o que explica que a janela seja outra de suas filhas.

Eis por que sabemos que tem raízes profundas em nossa alma, indo muito além de modismos midiáticos, o frenesi que nessa época nos leva a passar em revista o ano que se encerra, tentando apurar seu saldo de altos e baixos, ao mesmo tempo que fazemos listas de "resoluções" bem-intencionadas —que, na maior parte das vezes, já estarão desmoralizadas antes do Carnaval.

Essa contabilidade de fatos e sonhos também deixou marcas no mundo das palavras. O sentido original do substantivo latino "calendarium" era o de livro-caixa ou inventário, registro de entradas e saídas de dinheiro ou mercadorias. Só mais tarde a palavra ganharia no próprio latim o significado que passou ao português: o de registro do tempo.

Uma das seções de maior sucesso do blog de literatura que mantive por dez anos, o Todoprosa, chamava-se "Começos inesquecíveis" e trazia grandes aberturas de romances de todos os tempos. Coisas como "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo" (de "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez).

Moviam o sucesso de público daquela seção, creio eu, duas verdades paralelas: é mais fácil começar bem do que continuar bem, mas é muito importante começar bem. Bom começo de 2025 a todos.


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