Em um vídeo comentado na Folha por Marcos Augusto Gonçalves, Fernanda Torres se pergunta o que poderiam os estrangeiros aprender com Clarice Lispector, Machado de Assis ou Nelson Rodrigues.
Poderíamos também perguntar-nos: que pode o mundo aprender com o 8 de Janeiro de 2023? Creio que sei uma parte da resposta.
Enquanto português, faço parte dos privilegiados que podem facilmente aprender com o Brasil sem ser brasileiro. Isso significa aceder ao tesouro da cultura brasileira desde pequeno —na minha infância, passada no Portugal dos anos 1970, um dos nossos grandes orgulhos era saber que Chico Buarque compusera "Tanto Mar", dedicada à nossa Revolução dos Cravos.
Portugal foi também provavelmente o país do mundo que mais atentamente seguiu os acontecimentos da violenta insurreição que invadiu, vandalizou, urrou e defecou nos belos edifícios da praça dos Três Poderes, em Brasília, há dois anos.
O resto do mundo tinha já assistido incrédulo aos acontecimentos precursores do 6 de Janeiro de 2021, quando uma multidão violenta invadiu o Capitólio, nos EUA. Mas poucos pelo mundo seguiram com a mesma ou ainda maior atenção o que se passou no Brasil dois anos depois.
Poderiam ter passado da incredulidade à aprendizagem. O poder da repetição forçou-nos a reconhecer que não estávamos apenas perante um evento fortuito mas perante um movimento de imposição autoritária, de demonização dos adversários e de fanatismo que não admite derrota. Um movimento essencialmente antidemocrata, por só aceitar a democracia pela metade (quando ganha).
Por muito semelhantes que tenham sido os eventos de Washington e Brasília na sua origem, a partir da sua recepção eles divergem vincadamente. Os estadunidenses —suas instituições, opinião pública e cultura política— não conseguiram extrair até ao fim as conclusões daquilo que tinham vivido.
Os brasileiros —de novo, não só as suas instituições, mas também setores decisivos da opinião pública e da cultura política— não tiraram conclusões apenas do que tinham vivido, mas também do que os seus homólogos da América do Norte não fizeram.
Em seu contraste, os eventos de Washington e Brasília oferecem uma lição sobre dois tipos de democracia: aquela a que poderíamos chamar de neutra, e a que foi convencionado chamar-se, após a obra do jurista antifascista alemão Karl Loewenstein, a "democracia militante".
Na "democracia neutra", o sistema democrático é entendido apenas como uma espécie de recipiente vazio onde qualquer ingrediente vale o mesmo, e cada um deve apenas ser contrariado pela supostamente natural "dinâmica dos fluídos" no interior do recipiente.
Na democracia militante, não vale tudo; a democracia precisa de ser defendida, e os democratas têm de ter a autoconfiança necessária para fazê-lo, por meio da lei, das instituições e da cultura política democrática.
Eu não sei, taticamente, qual é o melhor caminho. Mas sei, moralmente, que se é para a democracia cair, que caia lutando.
E aí estou como Fernanda Torres. Que pena o mundo não aprender mais com o Brasil.
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