sábado, 18 de janeiro de 2025

Antonio Prata Contabilidade nazi-criativa, FSP

 O grande mal que nos assola não é a polarização, não é o identitarismo nem "é a economia, estúpido!". É a estupidez, estúpido. É a burrice, desgraça que grassa por todos os lados no ano da graça de 2025.

Vejam só: um vilão da novela das nove diz para seu contador fazer uma "contabilidade criativa" e esconder a corrupção na empresa. O Conselho Regional de Contabilidade do Estado de São Paulo (CRCSP) publica uma nota de repúdio ao folhetim. "Sugerir, em um produto de entretenimento, que contadores participem de práticas ilícitas ou antiéticas contribui para a disseminação de estigmas equivocados, subestimando a importância da contabilidade na construção de uma sociedade mais justa e responsável."

A imagem apresenta uma figura que combina um bloco de construção com um casaco. A parte superior é formada por um bloco de tijolo, enquanto a parte inferior é um casaco de cor clara, com mangas e punhos visíveis. O fundo é de uma cor clara e uniforme.
Adams Carvalho/Folhapress

Tenho certeza de que o autor de "Mania de Você", João Emanuel Carneiro, não subestima "a importância da contabilidade na construção de uma sociedade mais justa e responsável". Até porque, imagino, diante da uberização dos profissionais do audiovisual, ele seja PJ e dependa dos profissionais da área. Acontece que as novelas têm vilões e esse tipo de personagem caracteriza-se por, veja bem, fazer vilanias. Se for um médico, vai fazer maldade na medicina. Se for um taxidermista, vai fazer maldades na taxidermia – embora eu não consiga imaginar, de imediato, que sacanagem alguém possa fazer ao empalhar um guaxinim.

A literalidade é das formas mais irritantes de burrice, e, dentro da literalidade, a incapacidade de discernir entre a ficção e a realidade é das suas manifestações mais danosas. Eu disse que não eram a polarização nem o identitarismo as maiores pragas atuais, mas eles colaboram com a dificuldade contemporânea em compreender que quando, num livro, filme, novela ou série, um personagem gordo, magro, preto, albino ou ruivo dá um peteleco no lóbulo de outro, a obra não está afirmando que toda pessoa gorda, magra, preta, albina ou ruiva dê petelecos nos lóbulos dos outros.

Dois anos atrás, assisti no Mirada, festival ibero-americano de teatro, do Sesc, a uma excelente peça chilena. Eram quatro artistas brancos que pensavam numa forma de emplacar a próxima exposição num mundo em que ser branco, no mundo das artes, não é mais necessariamente uma vantagem. Era uma comédia e esses quatro brancos imaginavam formas mais "cool" de se venderem. Fingiriam ser pobres? Invocariam uma mentirosa ancestralidade indígena? Em determinado momento, um dos personagens coloca uma peruca "blackpower" e sugere tentarem se passar por pretos. A piada era em cima dos brancos tentando dar um golpe e embarcar nas pautas identitárias. Ria-se do patético de um pessoal que perdeu parte de seus privilégios, após alguns milênios de opressão às minorias, agora tentar se passar pelas minorias.

Quando acabou a peça teve uma discussão e boa parte da plateia estava revoltada com a peruca "blackpower". Disseram que era como "blackface". Era, exatamente, confirmaram os atores, mas, no caso, para criticar o "blackface". Não teve jeito. Branco tentar se passar por preto era "errado". Exato, os atores insistiram. A peça é exatamente sobre isso. Sobre o erro daqueles brancos. Impossível, os argumentos racionais batiam numa muralha da China de burrice. (Não há aqui nenhuma crítica à China ou aos chineses, sim à muralha, ok?).

Vai chegar o dia em que proibirão "A Lista de Schindler" porque nele todos os nazistas são antissemitas. Embora, talvez, os contadores cancelem o filme antes, pois Schindler era contador. E nazista. Obviamente, uma ideia preconceituosa que tenta vender o nobre ofício da contabilidade como um antro de supremacistas brancos. Por favor, parem o mundo que eu quero descer.


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