Judiciário e leis dos países não evoluíram para tratar do comportamento desviante do app
Imagine um aplicativo que é utilizado por 50 milhões de pessoas no Brasil. Esse aplicativo tem acesso a todas as informações mais íntimas que uma pessoa pode ter: suas fotos, vídeos, mensagens, rede de contatos, nome, bem como sua localização em tempo real.
Além disso, guarda nos seus servidores todas as suas mensagens enviadas, fotos, vídeos e documentos. Nesse mesmo aplicativo, há relatos de venda de armas, tráfico de drogas, campanhas de desinformação e até mesmo pedofilia.
O nome do app é Telegram, e ele tem um problema: está fora do alcance da lei brasileira. Mesmo com tantas pessoas no país engrossando seus números de usuários (e faturamento), a postura da empresa e dos indivíduos que mantêm o serviço é ignorar solenemente qualquer autoridade do país.
Por exemplo, o aplicativo ignora há seis meses uma ordem judicial expedida pelo Supremo Tribunal Federal para remover um conteúdo ilícito. Não só não removeu como não deu nenhuma satisfação sobre essa inércia.
O fato é que, com tantos usuários, o aplicativo tem acesso a uma radiografia em tempo real de tudo que acontece no país, inclusive quanto a autoridades públicas. Mesmo que os juízes do STF não sejam usuários, é certo que muitos dentre os 2.800 funcionários do Supremo usam o app, entram no prédio do Supremo todos os dias com ele instalado e compartilham por ele informações obtidas a partir do seu trabalho na corte.
Em outras palavras, o Telegram não quer saber do Brasil nem do Supremo Tribunal Federal, mas aceita de bom grado as informações colhidas e geradas pelos funcionários que trabalham nele.
O caso do Telegram mostra claramente que as instituições existentes no mundo de hoje falharam ao lidar com um problema que é novo, complexo e de natureza global.
O Poder Judiciário e as leis dos países não evoluíram para tratar do comportamento desviante de um aplicativo como o Telegram.
Esse problema não é só brasileiro. A Alemanha está neste exato momento lidando com a mesma questão. O Telegram tem sido utilizado para planejar atentados no país, inclusive um plano de assassinato de um governador estadual.
Diante desse desafio, a Alemanha está discutindo ao menos duas soluções. A primeira é bloquear o Telegram, ordenando que os provedores de serviço de conexão à internet excluam os endereços que permitem acessar o serviço. Na prática, isso tornaria o serviço indisponível para a maior parte das pessoas do país.
A outra solução estudada pela Alemanha é ordenar que empresas privadas como o Google e a Apple removam o app das suas lojas de aplicativo, tornando-o indisponível para novos acessos. No mundo, vale lembrar que ao menos 11 países já bloquearam o Telegram, incluindo a Índia e a própria Rússia, país de origem do aplicativo.
No entanto, todos compartilham da mesma constatação: as instituições precisam evoluir para dar conta de novos desafios dessa natureza. Um aplicativo de alguns poucos megabytes instalado no celular consegue hoje colocar em xeque o poder dos Estados nacionais construído historicamente.
Hegel precisaria rever parte da sua obra se estivesse vivo.
READER
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