Dentro do prédio da principal estação ferroviária de Bauru, no interior paulista, dezenas de embalagens de marmitex estavam amontoadas no chão e o cheiro era muito forte, quase insuportável.
Do lado de fora, roupas velhas, garrafas e colchões mostravam que moradores de rua dormem sob a marquise da imponente construção que, em seu topo, tem até hoje cravadas as letras NOB, em referência à Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.
Era de onde partia o lendário Trem da Morte, ferrovia com 1.272 quilômetros de extensão cuja linha-tronco ia da cidade a Corumbá (MS), na fronteira com a Bolívia, de onde se conectava à rede de trilhos que leva a Santa Cruz de la Sierra, maior cidade boliviana, com mais de 1,5 milhão de habitantes.
Primeiro trecho da já extinta RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.) privatizado pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em 1996, o Trem da Morte matou de imediato o transporte de passageiros.
O governo federal não incluiu a exigência de manter trens de passageiros no trecho, e a Novoeste, que levou a concessão, descartou recuperar o meio de transporte e afirmou que ele não era lucrativo. Só trens de carga operam em todo o trecho desde então.
Os contratos de concessão assinados na sequência marcaram o fim definitivo do transporte de passageiros em trens em solo paulista —no país, restam só duas linhas regulares, entre Cariacica (ES) e Belo Horizonte e de São Luís a Parauapebas (PA), ambos geridos pela Vale.
O episódio de 25 anos atrás foi só mais um para deixar em ruínas a icônica ferrovia, que começou a ser construída em 1905 e que nas últimas décadas sofreu movimento oposto.
A Folha percorreu todo o trecho, via rodovia, entre Bauru e a boliviana Puerto Quijarro, e esteve em 24 estações, nas quais encontrou destruição e histórias de desolação de ex-maquinistas e antigos usuários das ferrovias.
Das ao menos 122 estações, segundo pesquisadores, que foram erguidas de Bauru a Corumbá para abrigar os passageiros —e cargas—, pelo menos 80 foram demolidas ou estão em processo avançado de deterioração, abandonadas ou fechadas, sem uso algum. Muitas já não existiam décadas antes da privatização.
O restante é usado como moradia (principalmente por ex-ferroviários), espaços culturais, órgãos públicos ou pela própria operadora ferroviária —Rumo Logística. A maior parte das estações está sob responsabilidade da União.
O estrago sentido logo na primeira estação, em Bauru, onde a Noroeste foi tão importante para o desenvolvimento que inclusive batizou o tradicional time de futebol local, continuou nas próximas paradas paulistas da rota.
Em Avaí, as portas da estação estão escancaradas, não fecham mais. Janelas não têm vidros, e o forro está totalmente comprometido, assim como parte da cobertura da plataforma de embarque.
Vizinhos contam que grupos eventualmente se reúnem para limpar o local.
Ex-maquinista da RFFSA, o aposentado João Laurindo de Moraes, 66, disse ter contabilizado 12 mortes de passageiros, alguns atropelados, em seus 20 anos de atuação no Trem da Morte, 4 deles no transporte de passageiros entre Bauru e Três Lagoas (MS).
"O transporte era muito viável na época, as estações eram cheias de gente, mas acidentes aconteciam. Dá tristeza ver isso vazio hoje", disse ele, que se aposentou no ano seguinte à concessão.
O verdadeiro Trem da Morte é o boliviano, que ganhou o nome devido ao número de acidentes, como descarrilamentos, e também por ser no passado rota para o transporte de doentes, mas a "extensão" brasileira com o tempo foi batizada com o mesmo nome, especialmente a partir dos anos 60, quando houve a desaceleração gradual de investimentos na estrada de ferro.
Nas duas últimas décadas, a viagem de Bauru a Corumbá era feita em cerca de 30 horas, já que o trem não podia correr muito devido à precariedade da ferrovia e por parar em dezenas de estações nas 34 cidades.
"Apesar do nome [Trem da Morte], ele não carrega uma aura depreciativa para quem é de Bauru, pois todos da região sentem a importância do que foi o trem", afirmou o historiador Henrique Perazzi de Aquino, filho e neto de ex-ferroviários e que é de Bauru.
Para quem percorreu a rota, integral ou parcial, a sensação é de melancolia com o abandono do legado.
"Era melhor e mais barato que ônibus", disse o aposentado Jaime Jesus da Silva, 81, de Guararapes, enquanto olhava para a estação da cidade, incendiada parcialmente em 2021.
Estações em Pirajuí, Lins, Coroados, Araçatuba, Mirandópolis e Rubiácea também apresentam problemas diversos. Na última, metade do prédio está destelhado e não há portas, janelas ou mesmo cobertura da plataforma de embarque, num local dominado pelo mato.
Em Andradina, a estação Planalto, na zona rural, tem só duas portas, em péssimo estado, e o piso está afundando. Já em Castilho, a estação está fechada.
Em Mato Grosso do Sul, os problemas são semelhantes, mas vivem o ápice em Corumbá, última parada da Noroeste.
Mais de 40 vagões abandonados há muitos anos, lixo nas salas, ao lado dos trilhos e na plataforma de embarque são apenas o cartão de visita dos estragos acumulados.
A maioria dos vidros foi quebrada por vândalos, que também picharam o imóvel. Parte da cobertura principal desabou. O prédio também sofreu incêndio parcial.
Antes de chegar a Corumbá, os estragos são visíveis em estações em Três Lagoas (Rio Branco), Ribas do Rio Pardo (Bálsamo), Campo Grande (Ligação) e Miranda (Agachi).
No lado boliviano, o entorno da estação de Puerto Quijarro, de onde parte o autêntico Trem da Morte, exige atenção de turistas. Há muita movimentação de motos e antigos táxis bolivianos, que levam passageiros para pequenos mercados na região.
Há, também, muitos cambistas, mas não quando a Folha esteve lá. A venda de bilhetes para Santa Cruz de la Sierra estava suspensa em razão da pandemia, de acordo com funcionários do terminal ferroviário. A viagem, de cerca de 650 quilômetros, pode ter duração de 14 a 19 horas, dependendo do trem escolhido.
A construção da Noroeste do Brasil teve como objetivo ligar o então enorme estado de Mato Grosso com São Paulo.
O governo federal assumiu a ferrovia, reconstruiu trechos e ergueu estações em alvenaria nos anos 1920.
Ela passou a fazer parte da RFFSA em 1957, onde ficou até a concessão à Novoeste na década de 90. Da empresa, em parceria com a Ferroban e a Ferronorte, surgiu a Brasil Ferrovias, que depois passou a ser Nova Novoeste, até ser incorporada à ALL (América Latina Logística). Esta, por sua vez, foi absorvida pela Rumo Logística, atual detentora da concessão.
A maior parte das estações está sob responsabilidade da União. Quatro delas —Pirajuí, Andradina, Castilho e Posto 1 de Bauru— fazem parte do contrato de arrendamento com a concessionária.
De acordo com a Rumo, a condução dos imóveis será tratada no processo de relicitação da malha oeste, aprovado em dezembro de 2020 pelo conselho do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos).
Sobre os vagões abandonados em estações do trecho, a Rumo informou que a destinação deles, que são arrendados e de propriedade do Dnit, "será tratada no âmbito da extinção do contrato de arrendamento da malha oeste em trâmite na ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e Dnit".
Já o Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) informou que faz parcerias com prefeituras e associações de preservação para permitir a guarda dos bens, como estações, e para evitar dilapidar o patrimônio.
Ainda segundo a autarquia, estações em Coroados, Guararapes e Três Lagoas foram alvo de termos de cessão de uso gratuito.
"O Dnit tem procedimentos institucionalizados para a evolução das cessões de imóveis, e, desta forma, temos formalizados muitos termos de cessão de bens imóveis no Brasil inteiro. Entretanto, para que isso ocorra, deve haver manifestação de interesse por parte dos municípios e das entidades de preservação", diz o órgão.
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