sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

M.T. ANDERSON Pandemia na Idade Média mudou trabalho para sempre e serve de lição para mundo atual, NYT FSP

 M.T. Anderson

Escritor norte-americano. É autor dos livros "Feed Conexão Total" e "Landscape With Invisible Hand"

THE NEW YORK TIMES

No rastro de uma pandemia devastadora, milhões de pessoas estão mortas e muitas mais tiveram suas vidas reviradas. Muitos dos sobreviventes, desgastados por uma sensação de inutilidade em seu trabalho e pela diferença intransponível entre os ricos e todos os demais, se recusam a retornar aos antigos empregos ou pedem demissão em massa. Cansados de excesso de trabalho e baixa remuneração, eles sentem que merecem uma vida melhor.

Essa poderia ser uma história sobre os dias atuais, mas é também o padrão que surgiu em toda a Europa depois da mais mortal pandemia registrada na história, a peste bubônica, também chamada de peste bubônica.

As lutas por salários e pelo valor do trabalho que definiram os anos após a peste foram, de certa forma, tão intensas quanto a própria pandemia. Afinal, a Europa explodiu em violência. Vendo onde estamos agora, vale a pena prestar atenção na série de acontecimentos que levou, passo a passo, da pandemia ao pânico e à revolta sangrenta.

É uma ilustração do trabalho camponês com uma cena de feno. Enquanto em primeiro plano uma mulher ajunta o feno e outra o empilha com a ajuda de uma forquilha, três cortadores formam leiras ao fundo, à direita. Outras figuras diminutas estão representadas num barco no rio, na escadaria que conduz à popa e na escadaria coberta no interior do palácio. A cena se passa às margens do Sena, em um campo localizado no local do Hôtel de Nesle, residência parisiense do Duque de Berry. Do outro lado do rio, estende-se todo o comprimento do Palais de la Cité, seguindo-se os jardins do rei, a Salle sur l'eau, as três torres Bonbec, Argent e César, depois o Tour de l 'Relogio. Atrás da galeria Saint-Louis no centro, as duas empenas do Grande Salão, a Logis do Rei e a torre Montgomery. À direita, a Sainte-Chapelle
Pintura ilustrando o trabalho dos camponeses na Europa na Idade Média - Irmãos Limbourg

A peste varreu como fogo o continente eurasiano de 1347 a 1351. O historiador árabe Ibn Khaldun lembrou horrorizado: "A civilização, tanto no Oriente como no Ocidente, foi visitada por uma praga destrutiva que devastou nações e fez populações desaparecerem. Ela engoliu muitas das coisas boas da civilização e as eliminou".

A Europa, fortemente atingida, perdeu algo entre um terço e metade de sua população (embora os historiadores ainda discutam o número). "Muitas terras e cidades ficaram desoladas", escreveu o historiador italiano Giovanni Villani em 1348. "E essa praga durou até ____." Ele nunca preencheu a data final, pois morreu de peste antes que pudesse.

Quando pensamos na peste negra, tendemos a pensar nas cenas horríveis relatadas nas cidades: os cadáveres amontoados, as valas onde os corpos foram jogados sem cerimônias. O que os contemporâneos também acharam estranho, no entanto, foi o que eles viram no campo —não cenas de destruição, mas imagens de abundância e fartura. Campos de grãos maduros inertes sob o sol. Vinhas pesadas de uvas. Essas visões eram inquietantes porque sugeriam que não havia mais ninguém vivo para fazer as colheitas.

"Muitas propriedades finas e nobres / Estão ociosas sem pessoas para trabalhar nelas", escreveu o poeta e compositor Guillaume de Machaut, que resistiu à peste trancado em sua torre. Seu poema continua:

"O gado jaz pelos campos completamente abandonado / Pastando no milho e entre as uvas / Em qualquer lugar que quisesse / E não tinham dono, nenhum vaqueiro / Nenhum homem para conduzi-los."

Após o colapso demográfico, houve uma grave escassez de mão de obra. E assim, após o choque inicial, como preveriam os economistas modernos, o preço da mão de obra disparou. Machaut escreveu:

"Nenhum homem teve seus campos arados / Seus grãos semeados, ou suas vinhas cuidadas / Mesmo que pagasse o triplo dos salários / Não, certamente, nem mesmo por 20 vezes a taxa / Porque tantos haviam morrido."

Trabalhadores de todo tipo —rurais, artesãos nas cidades, até mesmo párocos pobres que tiveram que atender os moribundos— olharam para suas vidas depois que a pandemia diminuiu e recalcularam seu valor. E viram um sistema impossível, que era inclinado contra eles.

Pintura ilustrando o lavrar do campo (cores e tinta sobre pergaminho) - Irmãos Limbourg

Na Inglaterra, por exemplo, cerca da metade da população estava legalmente amarrada à terra em servidão, forçada a trabalhar para o proprietário local. Mas, de repente, esses trabalhadores pareciam ter algum poder de barganha. Não eram mais obrigados a tolerar exigências irracionais. Seus empregadores não podiam mais tomá-los como algo garantido.

Por um lado, eles precisavam de salários mais altos para suportar a inflação descontrolada que se seguiu à peste: na Inglaterra, apesar da queda do preço de algumas matérias-primas básicas como grãos, os preços gerais dos bens de consumo aumentaram cerca de 27% de 1348 a 1350. Os trabalhadores reclamaram que não podiam pagar pelas necessidades básicas —e se não recebessem o que pediam largavam o arado, fugiam das aldeias de seus senhorios e iam buscar um acordo melhor.

Não sofremos um golpe demográfico tão brutal durante a Covid, mas ainda assim os trabalhadores americanos recalcularam o significado do trabalho e seu valor —e números recordes de trabalhadores deixaram seus empregos na Grande Demissão dos últimos meses. Cerca de 3% da força de trabalho total dos Estados Unidos se demitiu somente em novembro, informou o Departamento do Trabalho. De acordo com uma pesquisa de setembro, 46% dos empregados em tempo integral estavam considerando ou procurando ativamente um novo emprego.

Empregos com baixo salário tornaram-se especialmente difíceis de preencher, enquanto as redes sociais estão cheias de discussões irritadas sobre a necessidade de ter dois ou até três empregos para pagar um aluguel médio numa cidade média.

​Nos últimos meses, houve várias greves de destaque, com trabalhadores exigindo compensação justa e notáveis sucessos sindicais nas empresas Kellogg's e Deere. Nesse sentido, estamos vendo ecos da situação após a peste negra, à medida que os trabalhadores se recusam a retornar às condições pré-pandêmicas e reavaliam suas necessidades e seu valor. Muita coisa mudou nos últimos dois anos. O mundo está diferente.

À medida que avançamos para uma nova era pós-pandêmica, as tensões no mercado de trabalho do século 14 podem nos ensinar algo sobre a turbulência que está por vir.

Nos anos que se seguiram à peste, em toda a Europa, senhores de terras e nobres assistiram, primeiro com indignação, depois com fúria, enquanto as pessoas abandonavam seus empregos e partiam em busca de uma vida melhor. O que se seguiu foi uma onda histérica de leis que tentavam devolver a economia para onde estava antes da peste. Estatutos e decretos congelaram os salários nos níveis anteriores à praga; tornaram ilegal abandonar a terra de um senhor, ilegal fugir; com efeito, tornaram o próprio desemprego ilegal.

O Estatuto Inglês dos Trabalhadores condenou os camponeses que fugissem de seus contratos feudais a ter um "F" marcado em suas testas, por "Falsidade". Na Itália, as novas leis trabalhistas de Florença, abertamente chamadas de "Contra os Trabalhadores Rurais", declararam que aqueles que negligenciassem a terra de seu senhor poderiam ser julgados como rebeldes —passíveis de ser arrastados pelas ruas em correntes incandescentes e enterrados vivos.

A pressão continuou aumentando: de um lado, uma força de trabalho recém-empoderada exigia um salário digno, uma chance de florescer; de outro, reis e conselhos, lordes e plebeus ricos estavam determinados a que nada mudasse.

Com o tempo, a pressão tornou-se grande demais. Na segunda metade do século 14, a violência eclodiu em toda a Europa. Trabalhadores encheram as ruas das grandes cidades, queimando registros feudais e contratos de trabalho. Eles destruíam qualquer evidência de seu serviço e seus laços com a terra.
Um cronista chocado na França em 1358 escreveu que os camponeses indignados "mataram, chacinaram e massacraram sem piedade todos os nobres que puderam encontrar, até mesmo seus próprios senhores. Não somente isso: eles arrasaram as casas e fortalezas dos nobres".

Os nobres, por sua vez, começaram a queimar aldeias e a massacrar trabalhadores. O mesmo cronista francês os descreve atacando "não apenas aqueles que eles acreditavam ter-lhes causado dano, mas todos os que encontravam, fosse em suas casas ou cavando nos vinhedos e nos campos".

Na Inglaterra, o ressentimento popular sobre os impostos e as desigualdades ultrajantes explodiu em vandalismo e violência na Grande Revolta de 1381. Turbas executaram o tesoureiro-mor e expuseram sua cabeça decepada na ponte de Londres. Eles exigiam o fim do senhorio e não reconheciam nenhuma autoridade a não ser a do rei.

Claro, existem muitas diferenças importantes entre nossa situação financeira e política e as das décadas após a peste. Mas o crescente sentimento de frustração entre a vasta população trabalhadora dos Estados Unidos nos conecta aos camponeses e artesãos medievais que contrariaram as expectativas da elite e buscaram uma vida melhor para si mesmos.

Nas últimas quatro décadas, a maioria dos americanos viu seus salários estagnarem em relação ao custo de vida. As leis tributárias da era Trump de 2017 previram brechas que beneficiaram desproporcionalmente os ricos. E nós, assim como os camponeses medievais, estamos cercados pelo espetáculo de indivíduos de alta renda e seu aventureirismo caro. As fortunas dos bilionários americanos cresceram 70% na pandemia —e, como soubemos neste verão, alguns deles pagam habitualmente nada ou quase nada em impostos.

Os ricos estão levando o resto da população para passear em um sistema que é inclinado contra nós.

Esquerda e direita formulam isso de maneiras diferentes —mas todos nós estamos cientes dessa brecha.
O clima do país está sombrio e basicamente dividido. Se virmos espasmos de violência, prevejo que sejam menos parecidos com a política revolucionária dos levantes medievais do que com as atrocidades irracionais e absurdas que muitas vezes aconteciam nas sombras desses levantes, quando as turbas visavam grupos externos: os judeus, acusados de envenenar poços; os flamengos, acusados de roubar empregos dos ingleses, alguns dos quais foram caçados nas ruas e mortos.

Como, então, podemos abordar as desigualdades cavernosas e evitar a violência do ressentimento?

O eleitorado americano precisa de uma história compartilhada que corresponda aos fatos, sem bode expiatório ou paranoia conspiratória. Este é um momento propício para a ação, exatamente porque compartilhamos alguns fragmentos de uma história: um cansaço e cautela; uma sensação de que não podemos avançar; uma indignação porque os poderosos nunca têm de prestar contas.

As grandes revoltas medievais reuniram pessoas de diferentes classes sociais, rurais e urbanas: não apenas camponeses, mas artesãos, construtores, pequenos comerciantes e até mesmo o clero. Um movimento coletivo de trabalhadores poderia fazer algo semelhante por nós hoje.

As vitórias sindicais dos últimos dois meses são um ótimo exemplo de como os trabalhadores podem se unir e aproveitar este momento de dissidência —e um exemplo de como as elites executivas podem fortalecer a lealdade dos empregados em um momento de alta rotatividade.

Também precisamos discutir de forma mais proativa a crescente lacuna da desigualdade de renda que marcou este novo século. A esta altura, o 1% dos que têm renda mais alta possui quase um terço de toda a riqueza do país, enquanto os 50% mais pobres detêm cerca de 2,5%. Sabemos há muito tempo que uma desigualdade tão acentuada sufoca o crescimento econômico —e essa é uma história que precisamos continuar contando.

Mas as respostas também precisam vir da nossa própria elite dominante. Os legisladores dos Estados Unidos devem aliviar a tremenda —e potencialmente violenta— pressão acumulada com ações que abordem as coisas que contribuem para nossa sensação nacional de inutilidade: aumentar o salário mínimo, ajudar com as dívidas, equilibrar o código tributário para que os ricos paguem sua parte justa, criar empregos sólidos de infraestrutura, oferecer creches infantis e seguro-saúde para os trabalhadores americanos (medida que também ajudaria os pequenos empregadores).

Em vez de testemunhar impotentes a divisão, poderíamos buscar prosperidade e oportunidades para todos os nossos compatriotas. Imagine o sentimento de orgulho e objetivo compartilhado que são possíveis. Tais medidas de apoio aos consumidores injetariam dinheiro na base do sistema. A economia como um todo se torna mais estável quando há uma ampla base de pessoas que têm dinheiro para gastar. Politicamente, o país seria menos inclinado a tumultos. Os jovens poderiam até sentir esperança.

Mas é raro que a elite se disponha a pensar em longo prazo. A maioria, como aquelas de toda a Europa após a peste, opta por se apegar mais firmemente ao que possui, para tentar manter uma tampa fechada sobre a prosperidade compartilhada dos outros —e, ao agarrar tudo para si mesmos, no final empurram seus países para a crise e ficam com nada além de tumulto, luto, medo, chamas e sofrimento.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves


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