A CPI da Covid desvelou uma série de casos escabrosos na condução da pandemia pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL). Um aspecto pouco percebido foi a forma como a pandemia foi explorada para aliciar novos aliados para seu projeto político de formação de uma "contraelite" administrativa e empresarial, da qual empresários como Luciano Hang são os mais emblemáticos.
Para disseminar e sedimentar o reacionarismo e o negacionismo na opinião pública, o governo Bolsonaro, desde o primeiro dia, busca atrair empresários. No exterior, faz aliança com outros países dominados por regimes de extrema direita e, no interior, com empresários "alternativos", ressentidos por sua exclusão dos círculos de prestígio. O recrutamento pressupõe fidelidade ao projeto político do clã presidencial e submissão à sua ideologia reacionária, que prega o retorno a formas tradicionais e não secularizadas de vida social, dominadas pela família patriarcal e por sacerdotes. Uma vez que a ciência solapa as bases daquele projeto, ela passa a ser combatida pelo pelo negacionismo, que revaloriza o papel da religião e do ocultismo na definição da verdade. A contrapartida oferecida pelo governo são ofertas e promessas de facilidades em contratos administrativos e impunidade judicial.
Entre os inúmeros casos que revelam o modus operandi de aliciamento empresarial do bolsonarismo durante a pandemia está o caso dos experimentos com a proxalutamida, tornado público pela CPI da Covid. A substância foi testada no Amazonas na busca pela validação da hipótese de que a sua administração geraria efeitos positivos contra a Covid-19. O principal responsável pela pesquisa, o endocrinologista Flávio Cadegiani, tomou a peito fazer os testes numa rede hospitalar do grupo Samel, que divulgou depois de algumas semanas resultados incrivelmente positivos.
O presidente Bolsonaro e o então secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Hélio Angotti, celebraram em live o êxito, que dispensaria a realização de lockdowns e o empenho na obtenção de vacinas. Ocorre que cerca de 200 dos 600 pacientes testados morreram pouco depois. A equipe de Cadegiani teria descumprido os protocolos aprovados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
A investigação levada a cabo pela CPI da Covid concluiu que o desastre era obra de um "gabinete paralelo" montado pela família Bolsonaro para impor o negacionismo aos técnicos do Ministério da Saúde. Angotti era discípulo de Olavo de Carvalho, ícone do reacionarismo brasileiro. Já o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello empregara seus contatos no Amazonas, sua base política, para cooptar empresários dispostos a sacrificar as regras de controle dos experimentos científicos.
A rede hospitalar amazonense onde os testes fraudulentos foram efetuados pertencia ao irmão de um deputado ligado à facção bolsonarista daquele estado. Tudo indica, portanto, que os testes da proxalutamida foram capturados pelos interesses de um governo negacionista, desejoso de apresentar ao público uma pílula qualquer que simulasse prevenir o contágio do vírus. E entregou a tarefa a um grupo hospitalar disposto a encampar resultados falsos, com a promessa de impunidade e recompensa por sua adesão ao projeto de poder de Bolsonaro.
A tragédia em torno da proxalutamida ilustra assim tanto a influência criminosa do reacionarismo e do negacionismo na política sanitária como o método de cooptação empregado pelo governo para fazer da pandemia uma oportunidade para recrutar quadros empresariais que pudesse chamar de seus.
Exemplos como este podem ser multiplicados às centenas nas mais diversas áreas de atuação do governo, desde a infraestrutura à cultura. Quando as autoridades competentes no Ministério Público e no Tribunal de Contas da União (TCU) tiverem completado suas investigações, será possível fazer o inventário geral dos crimes cometidos pelo atual governo contra a administração pública em seu esforço por conseguir aliados e enraizar, com recursos do Estado, uma cultura de extrema direita na nossa sociedade.
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