Quer saber o que está acontecendo em universidades brasileiras, que, mesmo com a permissão para retomar aulas presenciais, insistem em se manter no ensino remoto?
Aqui está uma pequena amostra dos absurdos: para reduzir custos com professores, formam-se "pools" de turmas. Uma sala virtual pode reunir centenas de alunos, agrupando, de forma aleatória, iniciantes com quem está prestes a se formar. As grades de disciplinas viram uma salada e atropelam a sequência lógica, obrigando estudantes a cursar, por exemplo, Matemática 2 antes da 1 ou Direito 4 antes do 3.
As provas não são produzidas pelos professores das turmas, mas por programas digitais que utilizam bancos de questões pré-preparadas, e as correções são automatizadas.
Mestres e doutores são demitidos e se tornam "prestadores de serviço", para produzir pacotes de aulas gravadas, recebendo por isso cerca de 30% do que ganhavam nos cursos presenciais. No lugar deles, "tutores", alguns sem título de pós-graduação e mesmo recém-formados, tornam-se responsáveis pelas turmas.
Passou da hora de se olhar para a situação dos universitários, que foram negligenciados nos debates da pandemia, tratados como vilões da transmissão do vírus. Eles estão perdidos, esgotados, desmotivados, com ansiedade e depressão. A evasão no ensino superior bate recordes no país.
No ano passado, só nas universidades privadas, 3,42 milhões de estudantes abandonaram as faculdades, o que representa 37,2% do total, a maior evasão de toda a série histórica registrada pelo Semesp, o Sindicato dos Estabelecimentos Mantenedores do Ensino Superior Privado.
Há nesta conta, logicamente, o abandono por dificuldades financeiras. Mas não se pode mais negar que o fechamento das universidades tenha trazido prejuízos emocionais e de aprendizado aos alunos e os levado a desistir. O curso dos sonhos torna-se um enfado, e jovens pulam de uma faculdade para outra, sem saber se estão com dificuldade para escolher a carreira ou desorientados em razão do ensino remoto.
Enquanto isso, universidades insistem em adiar o retorno presencial com a justificativa de preservar a saúde. Obviamente que essa hipocrisia não cola mais, com tudo funcionando no país, alguns setores desde 2020. Ou vamos fazer de conta que todos da universidade, alunos, professores e funcionários, estão em casa, confinados, e que as aulas seriam a única e grande ameaça de se contaminar com a Covid-19?
Cansados disso, alunos se mobilizam, e os calouros deste ano dão força, afinal, muitos tiveram de aguentar o 2º e o 3º ano do ensino médio fora da escola. Eles não querem, e não merecem, suportar o 1º da faculdade no mesmo esquema.
Os protestos surgem em universidades privadas, que têm aproveitado o fechamento para reduzir custos e compensar a perda de alunos, e nas públicas, nas quais há forte pressão de professores contra a reabertura. Em São Paulo, já houve atos de alunos do Mackenzie e da Fundação Getúlio Vargas. Os cartazes traziam dizeres como "Todos vacinados", "Alunos na universidade já", "Escola volta e universidade não?" e "O EAD [ensino a distância] mais caro do Brasil".
Na Universidade de São Paulo, o centro acadêmico da Escola de Comunicações e Artes fez um abaixo-assinado defendendo a retomada presencial e apontando os "malefícios nítidos" do sistema remoto, como "queda no rendimento, cansaço, desestímulo, dificuldade de interação, de foco e adoecimento mental".
O texto denuncia que debates na USP, com o apoio de parte do corpo docente, caminham para manter permanentemente parte das aulas a distância. "Não aceitaremos a imposição de aulas virtuais após a pandemia", dizem os alunos.
Nas particulares, também já se percebe a intenção de prosseguir remotamente com o maior número de aulas possível, mesmo sem pandemia. Há planos de se chegar ao limite legal de 40% de atividades remotas, avançar nessa porcentagem e até transformar cursos antes presenciais em EAD. Há reaberturas de fachada, com aulas nas faculdades uma, duas vezes por semana, e por apenas, duas, três horas.
A qualidade despenca. No Brasil, falta fiscalização e regulação no EAD, o que abre caminho para "fábricas de diplomas", faculdades preocupadas só com lucro. A professora de direito da USP Maria Paula Dallari Bucci, ex-secretária de educação superior do Ministério da Educação (2008-2010), e o professor da UFRJ Carlos Eduardo Bielschowsky, ex-secretário de educação a distância do MEC (2007-2010), alertaram para esse risco, em artigo do portal Jota, dando como exemplo cursos de pedagogia.
Em 2019, relatam, na pré-pandemia portanto, 55,5% dos alunos dessa carreira faziam EAD em faculdades dos dez maiores grupos de educação do país. Desses, 65% estavam em cursos com conceito insuficiente no Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), contra 22,2% nas presenciais. São esses os futuros professores do país. E, com o fechamento prolongado do ensino superior, uma geração de profissionais das mais diversas áreas terá sido formada com as fragilidades do ensino remoto.
É bom lembrar que as universidades do estado de São Paulo foram liberadas já no final de 2020 a retomar parcialmente as atividades presenciais e que, desde outubro de 2021, podem receber 100% dos alunos. Membro da comissão de legislação e normas do Conselho Estadual de Educação de SP, Décio Lencioni Machado diz que instituições que insistirem em permanecer fechadas devem sofrer ações judiciais.
Especializado em direito educacional, ele explica que a autonomia universitária, garantida pela Constituição, não pode ser confundida com soberania. "Há normas a serem cumpridas, e, no cenário atual, o fechamento das universidades não se justifica."
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