terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

'A Filha Perdida' e 'Mães Paralelas' mostram que homens são inúteis, Marcelo Coelho, FSP

 

Mulheres sozinhas, guiando o carro, costumam deixar a bolsa no banco do passageiro. Durante algum tempo, assaltantes em São Paulo se especializaram nesse tipo de vítima.

Bastava um congestionamento ou sinal vermelho, que eles quebravam o vidro com uma pedra, e roubavam a bolsa numa fração de segundo.

Uma conhecida, casada há muitos anos, passou por essa experiência. Detalhe: ela não estava sozinha. Dirigia, com o marido do lado, e a bolsa no colo dele. Os assaltantes não se intimidaram. Quebraram a janela, levaram a bolsa, sem que ele tivesse qualquer reação.

Ilustração que faz uma colagem com partes dos rostos de diferentes mulheres
Ilustração publicada em 22 de fevereiro - André Stefanini

A mulher, sem dúvida enfarada com muitos anos de casamento, desabafou para o marido. "Mas, Ademar… Nem para isso você serve?"

Fiquei com essa impressão depois de ver "Mães Paralelas", filme de Almodóvar disponível na Netflix. Janis, vivida por Penélope Cruz, é filha e neta de mães solteiras; o filme dirá se ela mantém ou não a tradição da família. O fato é que os homens, na condição de pais ou de maridos, não servem para nada.

Ao contrário, há mães em quantidade no filme —das menos convictas às verdadeiramente encantadas pelo bebê que acabaram de ter. A maternidade, como tudo, tem nuances.

Uma personagem (não é a única) ficou grávida por acidente. Tinha outra vocação que a de passar noites em claro dando de mamar —e não vejo como criticá-la por isso. Seu comportamento, contudo, trará consequências e sofrimento a todos.

"Mães Paralelas" não me entusiasmou; é basicamente um novelão. Salva-se pela extraordinária habilidade de narrativa de Almodóvar, abolindo qualquer momento inútil na trama.

Não há aqueles intermináveis momentos de espera que caracterizam tantos filmes "de arte", e os diálogos se reduzem ao essencial; se algumas falas são banais, parecendo expressar a primeira coisa que veio à cabeça do personagem, tanto melhor. Isso ajuda a tornar plausíveis, e humaníssimas, as situações improváveis que se sucedem.

Sobra tempo para pequenos momentos sem significado: a mulher mais velha ensina a mais jovem a descascar batatas, a fotógrafa profissional tira fotos de bolsas e sapatos para uma revista. O espectador não se importa: como nos filmes de Almodóvar quase tudo pode acontecer, uma faca cortando cenouras já se vê como prenúncio de alguma surpresa.

Ou como um símbolo evidente: os falos são inúteis, e mesmo a modelo que faz poses para a fotógrafa é na verdade um homem que mudou de sexo.

Se há mães em excesso no filme de Almodóvar, um problema simétrico parece orientar "A Filha Perdida", de Maggie Gyllenhaal. Aqui, os flashbacks da história remetem à situação de uma jovem universitária, que simplesmente não consegue aturar os dois filhos pequenos.

Enquanto o marido ajuda pouco, ela vive com as crianças momentos deliciosos —e muitos outros de inferno. Trabalhando em casa, com uma tese de doutorado para terminar, Leda —Jessie Buckley— precisa de concentração, de tempo, e talvez sobretudo de espaço.

As decisões que toma se refletem quando, mais velha —o papel é agora de Olivia Colman—, ela se vê às voltas com o desaparecimento de uma criança pequena e de sua boneca. O filme faz questão de explicar pouco o que ela faz ou deixa de fazer quando vê uma mãe jovem ficar desesperada com o sumiço da criança.

Em matéria de tensão e desespero, "A Filha Perdida" é bem pouco se comparado a "Wasp", um curta-metragem de Andrea Arnold, a que assisti pela plataforma Mubi.

Uma moça de classe baixa tem nada menos do que quatro filhos para cuidar. Ora essa, ela também tem o direito de parar num bar e reencontrar um antigo namorado; a química entre os dois é forte. O que fazer com as quatro crianças?

Deixa-as esperando, simplesmente, durante horas, na calçada. O medo de que algo possa acontecer se torna quase insuportável.

Sendo tradição dos filmes americanos o tema da busca do pai, eu estava desacostumado a assistir a filmes sobre a questão das mães —e de suas relações com as filhas.

Mas talvez o que exista de comum em "Mães Paralelas", "A Filha Perdida" e "Wasp" seja mais do que isso. Essas crianças que se perdem, se renegam e se abandonam estariam representando outra questão —a do aborto.

Na minha opinião, um direito essencial, que só no Brasil não se tem coragem de discutir. Mas, na vida de uma mulher, é mais que um direito: é uma decisão, e isso muda tudo. Não abortar também é complicado.

A dúvida, ao anteceder a escolha, muda o efeito da escolha. E, nesse dilema, como em outros, o mais comum é que o homem ou atrapalhe, ou não sirva para nada.

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