quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Sérgio Rodrigues - A sopa, a cartolina e o veneno, FSP (definitivo)

 

Escrever sobre palavras é uma atividade sempre encarada com alguma suspeita. Antiintelectuais em geral ficam irritados com a simples ideia de que se possa perder tempo com isso, mas nem os leitores argutos e de boa vontade conseguem impedir que um alarme soe de vez em quando no fundo da consciência: "São só palavras, a realidade é outra coisa!".

No momento em que ganha aceleração mais uma campanha eleitoral —quando as palavras importam como nunca—, convém esclarecer alguns pontos. As coisas têm precedência sobre os nomes que lhes damos, claro. No entanto, o modo como decidimos nos referir às coisas também são coisas. Convém explicar.

Colher com sopa de letrinhas
Colher com sopa de letrinhas - Adriano Vizoni - 17.mar.2015/Folhapress
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Uma vez imaginei a seguinte historinha. Um homem faminto (depois de visitar a Disneylândia em 2006, ele perdeu emprego e moradia durante a guarda de Paulo Guedes) tem diante de si os seguintes itens: um prato fumegante de sopa de legumes com carne e um pedaço de cartolina no qual se lê, escrito com pilot, "Sopa de legumes com carne".

A pergunta sobre qual dos dois itens é mais importante para a vida do sujeito parece ter resposta tão óbvia que chega a ser ofensiva, certo? Mesmo assim, é preciso fazê-la: qual dos dois itens, prato de sopa ou cartolina, é mais importante para a vida do homem que tem fome?

William Shakespeare poderia responder, falando pela boca de Julieta, que uma sopa, se tivesse qualquer outro nome, continuaria desprendendo o mesmo aroma delicioso. Com rosa no lugar de sopa, é o que diz a jovem de Verona no solilóquio famoso em que relativiza o fato de Romeu ser um Montéquio: "O que há num nome?". Ou seja, o cartaz é tão secundário que chega a ser irrelevante.

Muito bem. Então vamos imaginar que diante do homem faminto haja os seguintes itens: um prato fumegante de sopa de legumes com carne e um pedaço de cartolina no qual se lê, escrito com pilot, "Cuidado! Sopa com arsênico". Que tal repetir agora a pergunta sobre qual dos dois itens é mais importante para a vida do sujeito?

A trama nesse ponto se complica ao infinito, como é próprio da linguagem. O homem é analfabeto? Sendo alfabetizado, saberá que arsênico é um veneno? Sabendo de tudo isso, qual será seu grau de confiança na informação que consta do cartaz? E se for um trote de péssimo gosto? É possível que, apesar da incerteza, a fome atroz o leve a pagar para ver?

A palavra que nomeia a coisa não é, afinal, tão irrelevante quanto dizia Julieta. O próprio fim trágico dos amantes adolescentes de Shakespeare é uma prova disso. Se Romeu não se chamasse Montéquio, nome que o condenava a ser inimigo da família da amada, o fim da história teria sido outro. "O que há num nome?" Coisa à beça. Quem sabe a diferença entre a vida e a morte.

"No que depender de mim, lutarei até o fim para proteger a vida de nossas crianças", escreveu em sua conta no Twitter o presidente Jair Bolsonaro, a propósito da descriminalização do aborto na Colômbia.
Sim, estamos falando do presidente cujo negacionismo contribuiu decisivamente para a morte de 650 mil brasileiros, de um homem mundialmente famoso pelo desprezo à vida, que já criticou a ditadura militar por haver matado pouca gente e que fez as armas de fogo, os agrotóxicos e a devastação ambiental explodirem no Brasil.

Nessa hora, todos os que detêm a palavra se veem diante do dever moral de apregoar, com máxima ênfase, que a sopa tem arsênico. Se o pessoal vai saber ler o cartaz é outra história.

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