Karla Giacomin
Em plena ditadura militar, o ator e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) disse que existiam duas possibilidades para o brasileiro: "Ou a gente nasce de bunda virada pra lua ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo. Eu vim na pior, com urubu pousado na minha sorte. Me entralhei de saída", escreveu em 1976.
Quando lhe disseram que textos como este eram um clássico, ele teria respondido que não. Mas que, infelizmente, como os problemas do Brasil não se modificam, acabariam vindo a ser.
Mal comparando, em fevereiro de 2011, enquanto presidente do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso –sumariamente extinto pelo presidente Jair Messias Bolsonaro (PL)—, compartilhei com todos uma boa nova: quando soldados romanos iam para a guerra, havia uma saudação, "memento mori", que significa "lembre‑se de que você vai morrer". Hoje ainda digo "memento mori", mas lembrem-se que todos nós vamos morrer mais velhos.
A fala alertava para o envelhecimento intenso no Brasil e para os desafios de envelhecer em um país onde, antes de se tornar idosa, a pessoa já teria sido um cidadão sem garantia formal de direitos até 1988 e sem a concretização desses direitos até então. O que disse em 2011, mais de uma década depois, continua valendo.
A velhice é o presente recebido por 34 milhões de brasileiros, e o futuro aspirado por 176 milhões. Do que temos medo? De morrer? Não.
Temos dificuldade em nos reconhecer no velho e na velhice que está diante e dentro de nós. Convivemos com a falta de acesso de milhões de brasileiros que não "têm tudo de saída", nascem sem a garantia de direitos fundamentais e ainda são submetidos a racismo, sexismo, capacitismo, xenofobia, aporofobia, idadismo.
E daí? Em que isso nos afeta? Diriam aqueles que nos governam e já nasceram à frente, com vantagens na saída.
Nosso maior medo é o de envelhecer dependendo de cuidados em um país que desconstrói políticas universais de direitos. Se a longevidade é uma experiência individual, envelhecer acontece no coletivo.
Como sociedade, precisamos progredir para que envelhecer com saúde, dignidade, trabalho, respeito, educação, habitação, transporte, oportunidade de ser o que quiser, autonomia, direito a voto e a ser votado, seja assegurado a pessoas de todas as idades, independentemente da cor de sua pele, de todos os gêneros, credos, etnias, da condição social ou do local de moradia, inclusive para as pessoas privadas de liberdade e para aquelas que vivem em residências coletivas.
A questão é: até quando repetiremos a nossa própria história carregada de traumas e injustiças, que, na prática, afetam o direito a envelhecer com dignidade da maioria da população brasileira?
Qualquer desconstrução de políticas de Estado precisa ser cotidianamente denunciada e enfrentada pela ação da sociedade civil organizada. Por outro lado, é urgente a necessidade de uma Política Nacional de Cuidados Continuados.
Caso contrário, só nos resta concordar com o que Plínio Marcos alertava há quase 50 anos: em um país com tanta dificuldade em enfrentar suas mazelas sociais e em aprender com a sua história, a gente acaba mesmo virando um clássico.
SEÇÃO DISCUTE QUESTÕES DA LONGEVIDADE
A seção Como Chegar Bem aos 100 é dedicada à longevidade e integra os projetos ligados ao centenário da Folha, celebrado em 2021. A curadoria da série é do médico gerontólogo Alexandre Kalache, ex-diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde).
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