Um país pode ser analisado pela maneira como lida com o seu passado. Se dependesse do governo atual, a memória da ditadura de 1964 já teria sido sumariamente apagada, em linha com o queixume do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas sobre a Comissão Nacional da Verdade (CNV): "Foi uma facada nas costas".
O que assusta agora, em mais uma tentativa de eliminação do registro histórico, é sua origem em uma decisão judicial. O juiz federal Hélio Sílvio Ourém Campos, de Pernambuco, determinou que sejam cobertas por uma tarja todas as menções ao nome de Olinto de Souza Ferraz no relatório da CNV, sob a guarda do Arquivo Nacional, instituição quase bicentenária, tesouro da nossa memória.
Coronel da PM, Ferraz dirigia a Casa de Detenção do Recife quando o militante de oposição à ditadura Amaro Luiz de Carvalho foi morto, no cárcere, sob custódia do Estado brasileiro, conforme investigação da CNV. A sentença determinando o apagamento atendeu a um pedido dos filhos do militar.
A ordem judicial estabelece precedente de enorme gravidade. O relatório da CNV é um documento do Estado brasileiro, que trata da memória coletiva e, portanto, não pode ser mutilado de acordo com conveniências particulares. Nem pelo governo nem por decisão judicial, que, aliás, afronta leis vigentes. Importante lembrar que a CNV fez um trabalho de reconstituição histórica, sem o poder de punir qualquer criminoso que tenha agido em nome do Estado.
A Lei de Anistia, de 1979, aprovada ainda em regime de exceção, estendeu um manto de proteção que até hoje beneficia assassinos e torturadores bestiais, livrando-os do banco dos réus. É o contrário do que fizeram outros países, como Argentina e Chile. A esse respeito, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, é uma aula dolorosa, mas necessária, de como se olhar no espelho por mais tenebroso que seja o reflexo. Para isso, contudo, é preciso coragem.
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