Foi assinada, no dia 1º de outubro de 2021, a prorrogação antecipada do contrato de concessão da Comgás, por mais vinte anos. A prorrogação conta com os respaldos legal (Lei Estadual 16.933/2019), contratual (cláusula 5ª do Contrato de Concessão CSPE/01/1999), regulatório (avaliação e anuência da ARSESP) e anuência do poder concedente (parecer da PGE e assinatura do governo estadual).
O pedido feito pela concessionária, em setembro de 2019, foi submetido à Consulta Pública pela agência reguladora, que contou com ampla participação da sociedade – poder público, consultorias, associações de classe e cidadãos interessados.
A minuta de aditivo contratual recebeu o apoio de parcela considerável das contribuições, assim como sugestões para seu aperfeiçoamento — parcialmente acatados pela agência reguladora. Pequena parte das associações de classe, que representam algumas poucas indústrias, manifestaram preocupação com o suposto tempo exíguo para análise da documentação. Sem, no entanto, contestação objetiva à prorrogação.
Curiosa, porém, foi a contribuição enviada por uma Subsecretaria do Ministério da Economia (SEAE) à consulta pública, assim como a participação de representante da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em evento promovido por dois deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo, a respeito do mesmo tema.
Apesar de ter chamado atenção, a contribuição da SEAE parte de uma premissa completamente equivocada.
Afirma que o aditivo contratual traz como obrigação a construção do gasoduto “Subida da Serra”, o que teria “efeitos negativos (…) aos elos da cadeia produtiva de petróleo e gás” e “à economia como um todo”.
O equívoco reside no fato de que o gasoduto em questão sequer é citado no aditivo contratual, afinal sua implantação foi aprovada pela ARSESP dois anos antes, ainda em 2019, no âmbito da 4ª Revisão Tarifária da Comgás.
O projeto consta do plano de investimentos da concessionária (2018-2024) e foi também submetido à Consulta Pública, antes de ser aprovado pela Agência, reconhecido o critério de prudência do investimento (uso, utilidade e razoabilidade dos custos). Naquela oportunidade, não houve manifestação da SEAE ou da ANP.
O mesmo gasoduto tem sido alvo de ataque recente pela ANP. Em clara invasão de competência regulatória, a agência federal considerou que o gasoduto deve ser classificado como de transporte, afrontando a Constituição Federal, as Leis do Gás (Leis 11.909/2009 e 14.134/2021) e manifestações anteriores da área técnica da própria agência.
Nesse ponto, surge a grande questão: por que os órgãos federais manifestaram preocupação com um gasoduto de distribuição de apenas 15 km, que começa e termina dentro da área de concessão estadual e serve para atender a região metropolitana de São Paulo? O que há de tão relevante nesse duto, que atraiu a participação da burocracia federal para um processo eminentemente local?
Não é novidade para ninguém que as promessas do “Novo Mercado de Gás” seguem cobertas por uma camada de sal, sete mil metros abaixo da superfície do mar. Ao invés do propalado gás natural a US$ 5/MMBTU, a indústria paga, hoje, gás a quase US$ 20/MMBTU — com perspectivas de fortes reajustes em 2022.
A agenda regulatória da abertura do mercado de gás segue lentamente, preservando privilégios e prolongando o monopólio da Petrobras no setor. As tarifas de transporte do Gasbol poderiam ter caído até 70%, se a ANP tivesse reconhecido que o gasoduto já está amortizado — conforme alerta da própria Petrobras. Já as tarifas das Malhas Sudeste e Nordeste seguem intocadas, mesmo após a transferência do controle acionário pela Petrobras, garantindo retornos bilionários aos seus novos controladores.
Estranhamente, o que causa preocupação nas autoridades é a construção de um gasoduto de distribuição. O problema é que, ao trabalhar contra o “Subida da Serra”, ANP e Ministério da Economia atentam contra os próprios pilares de um mercado aberto e competitivo de gás natural. Pior: condenam os consumidores de São Paulo à escravidão no transporte e na comercialização de gás.
Com o “Subida da Serra”, consumidores livres e regulados de São Paulo terão acesso a diferentes fontes de suprimento, livrando-se do monopólio da Petrobras, uma vez que estarão diretamente conectados ao mercado internacional.
Ao contrário do que alguns hoje divulgam, o objetivo do duto nunca foi isolar São Paulo, mas trazer competição e racionalidade econômica ao mercado de gás no país. Com acesso a outras fontes de suprimento no litoral e sem depender das operadoras de transporte atuais, estariam criadas as condições para a expansão do livre mercado de gás.
Ora, qual o grande risco desse arranjo? Trazer competição para o setor de gás no país?
É legítimo que aqueles que estão sentados sobre fluxos de caixas bilionários trabalhem contra isso, mas é inadmissível que o poder público jogue o mesmo jogo de cartas marcadas.
Fica evidente que se criou no país uma classe de agentes intocáveis no mercado de gás. Todos advogam a favor de um “novo mercado”, desde que ele seja composto pelos mesmos agentes e siga sem muitos sobressaltos.
Novos players não são bem-vindos e muito menos a competição é desejada. Isso não pode ser chamado de “novo”. Nem de “mercado”.
Não resta dúvida que, no jogo de interesses do mercado de gás, o risco não é São Paulo formar uma “ilha de gás”, mas seguirmos escravos do “império do gás”, curiosamente defendido por aqueles que deveriam se rebelar contra ele.
Carlos Cavalcanti é vice-presidente da Fiesp e diretor titular do Departamento de Infraestrutura da Fiesp
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