Já pensou largar uma carreira consolidada no jornalismo com passagens nas mais prestigiosas revistas do mundo para ser estagiário em uma cozinha? Agora, já pensou em fazer isso na França sem falar nada de francês? E com uma família que inclui filhos gêmeos de dois anos a tiracolo?
O norte-americano Bill Buford, 66, que foi responsável pelo renascimento da revista literária inglesa Granta, que já havia sido editor da respeitada New Yorker e que já era autor de sucesso de livros como “Entre os Bárbaros” (Companhia das Letras, 2010), sobre a violência de hooligans ingleses, e “Calor”, sobre o cozinheiro Mario Batali, fez isso. E, spoiler, sofreu como um pobre demônio, como conta em “Cinco Anos em Lyon” (Companhia de Mesa), seu livro de memórias lançado neste ano sobre os momentos vividos entre 2007 e 2013 na cidade.
Quem é fã da gastronomia francesa sabe da importância de Lyon para sua história e relevância mundial. É de lá que veio o grande Paul Bocuse (1926-2018), estandarte da nouvelle cuisine, movimento que revolucionou a alta cozinha na França, e formador de milhares de cozinheiros. É de lá que vem também Daniel Boulud, um dos franceses emigrados mais bem sucedidos do planeta atualmente, chef de um três estrelas festejado em Nova York e que foi consiglieri da aventura de Buford.
O plano do jornalista parecia muito bom: faria um pré-estágio no restaurante do francês Michel Richard, aprenderia o básico e já seguiria para algum lugar da França com alguma base. Com seus contatos feitos nos EUA não deveria ser tão difícil encontrar uma boa cozinha. Seu francês nulo seria compensado pelo talento da esposa, a também então jornalista Jessica Green, a caminho de se tornar uma educadora de vinhos. E seus filhos aprenderiam um segundo idioma crescendo como poliglotas autóctones e educados sob a norma francesa. Agora entre expectativa e realidade, sabemos, há uma distância maior que os rios Rhône e Saône, que cortam Lyon.
Primeiro, Buford demorou para encontrar o estágio. Teve de começar como aprendiz de padeiro — uma das passagens mais lindas do livro é esta e um dos personagens mais sensíveis é o padeiro Bob, que acaba virando seu amigo e personagem também de um ensaio publicado na New Yorker.
Depois do período na boulangerie, o jornalista entendeu que sem um curso introdutório à cozinha francesa nada aconteceria e acabou por se matricular no Instituto Paul Bocuse, cujas aulas já davam uma aperitivo da dureza que encontraria adiante. Quando finalmente adentrou a cozinha, do lendário La Mère Brazier, fundacional da cozinha local, começou a assistir e a passar por uma série de humilhações e dificuldades que chegam a deixar o leitor incrédulo.
Por fim, no que diz respeito à família, Buford assina um atestado de egoísmo (em suas próprias palavras) e exalta a generosidade de Green nos cuidados com os filhos, que aprontaram algumas, ou várias (veja foto de seu Instagram abaixo), até assimilarem a cultura gastronômica francesa.
Apesar disso, não se trata de um livro amargo. É, sim, uma ode à gastronomia, uma declaração de amor à cozinha francesa, que é mostrada como intelectual, específica, histórica e (por que não?) sagrada. Bill Buford é tão apaixonado quanto irreverente e tem o dom de deixar o leitor grudado por mais de 500 páginas. (Aliás, o tamanho é uma das críticas ao livro, o que é curioso quando se sabe que Buford tinha fama de ser implacável como editor.) Ao fim da jornada, não duvido que você faça uma busca pelo preço de passagens a Lyon ou, pelo menos, faça reservas no restaurante francês mais próximo.
Parte da dificuldade é que era um restaurante muito famoso, um dos mais célebres de Lyon, e o chef estava sob muita pressão, eles estavam sem dinheiro
G |Foi realmente tão difícil quanto você conta no livro?
Bill Buford |Não, foi provavelmente mais difícil. Foi horroroso. Minha esposa foi muito generosa. Ja havíamos feito isso quando resolvemos ir para a Itália e eu virei açougueiro. Mas agora nossos filhos estavam no pacote… Parte da dificuldade é que era um restaurante muito famoso, um dos mais célebres de Lyon, e o chef estava sob muita pressão, eles estavam sem dinheiro, com bem menos do que precisavam. E, como você não pode economizar nos ingredientes, passaram a economizar na equipe, reduzindo pessoal. A pressão era genuína — hoje em dia é bem mais relaxado, mais humano, mais normal. Mas foi realmente horroroso, eu achei que não ia conseguir.
G |Por que não desistiu?
BB |Eu não conseguia imaginar escrever um livro sobre viver na França e que fosse uma história de fracasso. Em parte porque era o lugar onde eu queria estar. Uma das coisas que eu tento fazer como escritor é ir a lugares que não foram visitados antes. Eu me inspiro muito em um jornalista polonês chamado Ryszard Kapuscinski (1932-2007), que quando saía de Varsóvia voltava com histórias que ninguém jamais tinha ouvido antes. Tento ir um pouco mais longe e um pouco mais fundo. Neste caso, um lugar que é horroroso e brutal, e alguém me diz para bater em alguém, e as pessoas brigam de socos, que é a cozinha. Eu já havia escrito “Entre os Vândalos”, que era tão complexo que nem permitia anotações na frente das pessoas. Então eu sempre tinha que correr para ir ao banheiro para anotar o que fosse mais importante. Antes de lançar “Cinco Anos em Lyon”, cheguei a ligar para uma colega, Hortense, porque ela é citada no livro e eu queria ter certeza de que ela sabia disso, e para fazer alguma checagem sobre aquela realidade, perguntar “foi tão ruim quanto eu me lembro que foi?” E ela confirmou: “foi pior”. Para ela, foi uma experiência profundamente assustadora e humilhante. Ela nunca mais quis saber de nada que tivesse a ver com a cozinha. Nós falamos um pouco mais, até eu perguntar se poderia mandar meu livro para ela e o telefone ficou mudo. Ela não falou mais.
G |Neste cenário tão difícil, trabalhando longas horas, você estava ali com sua esposa e seus dois filhos pequenos. Sei que você sofreu muito na cozinha, mas imagino que ela não tenha ficado muito feliz de não ter com quem dividir o cuidado com os filhos. Como ficou essa parte da sua vida?
Bill Buford |Estressante. Ela definitivamente estava de acordo com a nossa ida, ela ama viajar, seu francês é perfeito. Nós estávamos indo para um país produtor de vinho, ela estava se tornando uma educadora da área, era uma aventura, nós estávamos mudando nossa vida radicalmente. Mas foi um pouco mais radical do que o que ela imaginava. E houve um momento em que ela ficou muito, muito brava. Eu queria cozinhar e estava na cozinha e ela disse que não havia preenchido nenhum formulário pedindo para ser uma mãe solteira. Era como ela se sentia, ela tinha que lidar com todo tipo de assunto porque eu chegava em casa de tarde, quando os meninos ainda estavam na escola, e caía dormindo de exaustão. Quando levantava, ia fazer meu turno da noite. Lembro de uma noite passear com os meninos no carrinho e um deles ficou confuso e começou a chorar e eu pensei que aquilo não era um bom sinal: a minha visão o fazia chorar. Os fins de semana eram difíceis porque eu estava exausto, mas eu definitivamente tinha que ficar com as crianças e fazer a minha parte. No fim, eram grandes momentos também. Era muito intenso. E eu fui, está implícito aqui, egoísta. Mas só assim eu conseguiria escrever o tipo de livro que eu queria. E foi fantástico criar os meninos na França. Eles seguem totalmente fluentes em francês e se tornaram parte do lugar.
G |Como você acha que o país os mudou?
BB |Agora já estão mais adaptados ao estilo de vida dos EUA, com 16 anos, mas eles sempre comiam à mesa e jamais entre as refeições, jamais um lanchinho. Outra coisa: eles guardam os assuntos mais interessantes de suas vidas, especialmente se são histórias engraçadas, para compartilhar na hora das refeições. Frederick tinha algo para contar ontem mesmo e falou “Não, quer saber, vou esperar a hora do jantar e te conto essa história”. A refeição é o momento em que ainda nos reunimos em volta da mesa por pelo menos uma hora com as crianças, o que para os EUA é bastante. E, por terem morado em outro país, eles têm uma ideia do que é o mundo, algo que é diferente de quem não sai do país. E, claro, eles não votariam em Donald Trump.
Ao cozinhar, sempre volto à França, eu amo a sua cozinha e a sua clareza. Há um tipo de integridade
G |Enquanto estava lá, parou de escrever?
BB |Quando eu estava na cozinha, o máximo que eu consegui fazer foi tomar algumas notas. Às vezes eu escrevia algo no fim de semana. Mas o meu problema é que eu comecei a escrever esse livro muito cedo. Como disse [o poeta inglês William] Wordsworth (1770-1850), a poesia é escrita nas lembranças de sentimentos fortes e na tranquilidade. E eu comecei a escrever a história antes que ela tivesse terminado, sem ter passado um tempo tentando entender a história. Acabei jogando fora muito do que escrevi. Outra coisa que aprendi foi a não contar sobre o que estava escrevendo enquanto escrevia. Quando fiz o livro dos hooligans, eu fui a um evento com grandes nomes da literatura a convite do Mario Vargas Llosa. E eu contei sobre o que vivi naquela tarde, uma grande briga entre os torcedores do Chelsea e do Manchester United. E todos ficaram muito impressionados. Mas foi como se eu tivesse gastado a história ali: eu nunca a escrevi, eu apenas a contei. E isso fez com que eu aprendesse a não contar antes de escrever porque é assim que você se sente compelido a finalmente fazê-lo.
G |Foi por isso que o livro demorou a sair? Seus filhos já estão com 16 anos…
BB |Sim, eu tentei escrever enquanto estava lá e foi um erro. Só quando estávamos de volta a Nova York consegui escrever. Mas, no final, a gente nem queria ir embora e ficamos tentando encontrar maneiras de ficar mais. Nós voltamos aos EUA em parte porque os meninos estavam perdendo seu inglês. Mas também, e principalmente, porque nosso dinheiro acabou.
G |Todos os textos que publicou na New Yorker recentemente têm a ver com cozinha francesa. Você virou de fato um cozinheiro francês?
BB |Eu me considero alguém que tem o treinamento francês, e este é um grande treinamento a se ter a seu dispor. Quando eu cozinho, eu tenho as pessoas que me ensinaram — e que gritaram comigo — na minha cabeça quase todo o tempo. Quando estou diante de uma tábua, se eu cometo um erro ao cortar um alho, há uma pessoa gritando na minha cabeça. Se eu estou filetando um peixe tem um cara gritando na minha cabeça ou mostrando a maneira correta de fazê-lo. Foi uma experiência incrível e eu tentei virar uma esponja. Eu não sabia falar francês, mas isso era o de menos. O importante era aprender como cozinhar sem cruzar as mãos para ser mais rápido, como usar uma faca, como filetar um peixe, como tirar suas escamas com a uma passada de faca. Mais do que qualquer outra coisa o que me interessa na cozinha é cozinhar com as estações. E saber cozinhar um mesmo ingrediente de diferentes maneiras e que qualquer coisa que você faça foi inspirado por pessoas que vieram antes. No outro dia, fiz tacos de peixe para o jantar, um excelente prato mexicano. Quando fui fritar o peixe, um linguado, eu o fiz do jeito que aprendi na França, usando todos os diferentes passos, usei meus temperos mexicanos na farinha de trigo, que depois era mergulhado no ovo, e depois na farinha de pão mais grossa que aprendi a fazer com Michel Richard. E então usei o óleo de abacate muito quente — a única coisa que talvez atinja temperaturas mais altas é a manteiga clarificada — e então ficou super crocante. Finalizei com um tipo de molho desconstruído. Essa é a maneira francesa, a mesma que uso para fazer o clássico inglês fish and chips. Eu entendi que sempre volto à França, eu amo a sua cozinha e a sua clareza. Há um tipo de integridade.
Quando você escreve sobre comida, você escreve sobre história, família, cidades, civilização e, necessariamente, política
G |É engraçado ouvir você falar isso porque, no livro, quando você fala da cozinha francesa há uma reverência e uma paixão. Mas você também fala de cozinha italiana e notamos que sua percepção é de que é mais divertida, fresca, fácil… O que diz disso?
BB |É isso mesmo. Mas se estamos falando da cozinha francesa regional, o que as pessoas cozinham no campo, a verdade é que ela se aproxima muito da cozinha italiana. Passei bastante tempo com o chef francês Daniel Boulud [de Lyon, mas que tem o estrelado Daniel em Nova York, entre outros em cidades norte-americanas e que é o símbolo do francês bem sucedido nos EUA], seu pai, um homem maravilhoso, e um camponês. Quando ele fala o dialeto que aprendeu na infância, as palavras parecem mais italiano que francês. No interior é assim, quase como se França e Itália se misturassem. Há muita alegria na cozinha italiana e muita expertise na francesa.
G |Agora na pandemia, soube que ensinou [o crítico gastronômico do New York Times] Pete Wells a fazer um frango num zoom de seis horas. Deu muitas dessas aulas?
BB |Essa receita era demasiadamente elaborada, foram quase sete horas. Eu fiz alguma coisa com a NPR [a rádio pública americana], que era cozinhar uma bexiga, mas era muito complexo e elas são difíceis de achar — nos EUA são proibidas, inclusive, e nós tivemos que conseguir algumas ilegalmente. Mas o prato que fiz com Pete Wells consistia em desossar um frango inteiramente e rechear o frango para que ficasse montado como se tivesse ossos, para ser, depois, fatiado. E eu propus que o fizéssemos para praticar. Há maneiras mais fáceis de desossar um frango, essa era mais difícil, e, depois de seis horas, o Pete Wells do outro lado da tela já estava exausto.
G |Para você, quanto mais difícil melhor?
BB |Olha, tem uma coisa de curiosidade, mas eu sinto que eu deveria ser capaz de cozinhar qualquer coisa. E, se eu não posso, é porque há um desafio técnico. Alguns são realmente tecnicamente muito exigentes. Eu ainda não voltei ao que fiz com Daniel Boulud [Buford cozinhou as receitas da infância de Daniel com ele para o livro “Cooking with Daniel Bouloud”]. Voltando ao frango de Pete Wells, era apenas um frango, mas eu tirei todos os ossos a não ser o bico. E aí você enche o frango com duas ou três outras galinhas para recheá-lo. Mate o frango e reconstrua-o para parecer o mesmo frango ou ainda mais belo. Hoje é algo que se faz por referência histórica e é sempre um empate: se não for um francês, é um italiano, como o caso do chef Maestro Martino que usou a mesma técnica, mas mais espetacularmente com uma… vaca.
G |O que acharam do seu livro na França?
BB |Ele não foi publicado ainda lá [quando a entrevista foi realizada]. Espero que odeiem e que me linchem [o livro não foi resenhado pelos grande jornais]. Eles nem gostaram da ideia. Apenas duas pessoas pareceram se interessar, nossa vizinha e Michel Guérard, um dos pais da nouvelle cuisine, que leu e gostou do meu livro “Calor”, um homem maravilhoso, que me ligou e disse que gostou do livro.
G |Num mundo de tanta crise, ambiental, política, sanitária, como escrever sobre comida de forma relevante?
BB |O que eu gosto sobre comida é que é sempre muito mais do que comida. Eu entrei nisso acidentalmente, eu era editor da New Yorker e, atrás de pautas, convidei Mario Batali para jantar. Ele era uma pessoa louca. Eu pensei: alguém tem que escrever sobre esse cara. E foi o editor David Remnick que disse que eu deveria fazê-lo, mas eu não queria escrever sobre celebridades. Por outro lado, queria trabalhar numa cozinha. Então usei isso como desculpa e a cozinha estava cheia de histórias, muito drama, muita narrativa. É uma área rica e todos temos que comer. E não sabemos cozinhar. Não nascemos sabendo cozinhar, temos que aprender. Quando você escreve sobre comida, você escreve sobre história, família, cidades, civilização e, necessariamente, política. Eu já tenho muitas ideias para novos projetos. Uma delas é debater como alimentar pessoas que estão com fome. A comida nos leva a todos os lugares. Escrever sobre comida é contribuir para o que os lioneses consideram uma das maiores atividades humanas, que é reunir-se ao redor de uma mesa e compartilhar comida e bebida. E é profundo. Não é apenas essencial para a sobrevivência, mas é quando coisas lindas acontecem e quando você vivencia a comunidade dessa maneira linda e maravilhosa.
- Cinco anos em Lyon – Uma aventura na cozinha francesa
- Bill Buford
- Companhia de Mesa
- 544 páginas
- R$ 114,90
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