"Vida é o que te acontece enquanto você está ocupado fazendo outros planos". A frase não é do John Lennon, como se crê, mas de um autor obscuro publicado na revista Reader’s Digest em 1957. Décadas depois, Lennon e Yoko a pescaram em algum canto e incluíram na música "Beautiful Boy".
Mesmo não sendo do Lennon, a frase caberia como subtítulo do documentário "Get Back" (Disney +), que retrata os Beatles em janeiro de 1969. Durante as quase nove horas da série, enquanto a banda e uma enorme estrutura de produção fonográfica e audiovisual se ocupam de outros planos, a vida não para de brotar pelas brechas. A disparidade entre o que eles achavam que estava acontecendo e o que de fato acontecia é uma das tantas maravilhas deste que foi, sem querer, o maior reality de todos os tempos.
Imagino o diretor Michael Lindsay-Hogg, o engenheiro de som Glyn Johns e os próprios Fab Four chegando em casa naquelas noites e falando "tá um caos, todo mundo implicando com todo mundo, os prazos estourando, a gente não sabe se tem um disco, se vai fazer show, onde vai ser, a Yoko tá quase morando dentro do bumbo do Ringo, a gente tropeça a toda hora nos hare krishnas do George e o John não lava o cabelo há duas semanas: deu ruim".
Nós, porém, do outro lado da tela e meio século depois, sabemos que daquele furdunço surgiram os discos "Let it be" e "Abbey Road", com algumas das músicas mais bonitas dos Beatles (e, portanto, do mundo), além do histórico último show, na laje da Apple. Mesmo o fim iminente da banda –que no filme parece um passo natural no processo de amadurecimento dos quatro, nem culpa da Yoko nem de ninguém– é um movimento tectônico que nós sentimos claramente e eles apenas vislumbram, atormentados por diabinhos menores.
Um dos mais perdidos é o diretor Michael Lyndsay-Hogg. O cara tinha metido na cabeça que queria filmar um show triunfal à luz de tochas nas ruínas de um anfiteatro romano na costa da Líbia. Em sua obsessão pela penumbra árabe, aquele bebê gigante sempre a fumar charutos não percebeu os holofotes diante do próprio nariz. Num determinado momento, ele reclama: "nós temos muitas horas de material filmado, mas não temos uma história". Não tinham mesmo uma história, tinham umas vinte.
O plot do George, caçula da banda, querendo se afirmar como um igual. O plot do John e da Yoko. O plot do Paul tentando ocupar o papel de líder, após a morte do empresário Brian Epstein. Os mini-plots da composição de cada canção. O plot da Scotland Yard querendo parar o show no telhado, metonímia maravilhosa de um plot muito maior e ainda se desenrolando, entre as cigarras que querem cantar no telhado e as formigas preocupadas com a "perturbação da ordem pública". O plot do fim do maior fenômeno pop da história.
Até Paul, o mais lúcido no recinto, está absorto em questões menores, incomodado com a possibilidade de fazerem "apenas mais um álbum", "apenas mais um show". Refém da juventude e da inventividade dos quatro, achava que tinham de se reinventar sem parar, criando uma nova forma de apresentar as músicas. A existência e o sucesso de "Abbey road" e "Let it be" vêm, ironicamente, do fracasso de Paul em sua empreitada. Ele, frustrado, achava que estava se repetindo, enquanto estava desenterrando ouro.
A ironia escreve torto por linhas certas. Onze anos depois da gravação do documentário e poucos dias após lançar "Double Fantasy", disco com "Beautiful Boy" e a frase que abre o texto, em 1980, a vida aconteceu pro John Lennon, acabando definitivamente com todos os seus planos.
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