O sucesso de Druk - Mais uma Rodada extrapolou as fronteiras da Dinamarca e o filme cavou uma indicação ao Oscar de melhor diretor, para Thomas Vinterberg, e ao Bafta de melhor ator, para Mads Mikkelsen. Isso dá a entender que é universal o apelo desta comédia dramática, mas talvez Druk seja mais interessante naquilo que revela das especificidades da sociedade escandinava em geral e dinamarquesa em particular.
A premissa renova os valores do carpe diem, num contexto de crise de meia idade, e é bastante linear na sua previsibilidade. Mikkelsen lidera um quarteto de professores de colégio que testam uma teoria pra ver se funciona: beber todo dia uma certa dosagem de álcool para operar socialmente em um estado de graça, de forma segura. Basicamente Vinterberg faz todo um filme para reforçar que é preciso beber com moderação, e o fato de cativar as pessoas com essa obviedade talvez fale algo sobre as qualidades de Druk.
Quais são elas? Bem, antes é preciso assumir que Druk realmente cativa seu público, e parte central disso seria o carisma de Mikkelsen, um raro ator escandinavo que conseguiu fazer a transição para Hollywood sem ficar preso em tipos cerebrais, insensíveis ou estoicos. Mikkelsen já fez todos esses papéis, claro, mas ele carrega consigo uma malícia que parece dizer: “Estou fazendo o tipo bruto e dedicado aqui mas no fundo atuar não é tão difícil e pode ser inclusive divertido”. Mikkelsen é um herdeiro digno do recém-falecido Max von Sydow nesse sentido, e brilha em Druk porque este parece um filme feito para tornar essa malícia mais latente.
Trabalhemos, porém, com a hipótese de Druk atrair as pessoas por outro motivo: uma certa dissociação. Em psicologia se define a dissociação como um estado mental em que se bloqueiam pensamentos, memórias e afetos quando são chocantes demais para a consciência lidar. Trazendo para o contexto do filme, é como beber para (se) esquecer. Na superfície, Druk está entregando uma moral da história muito simples em favor da alegria de viver. Ainda assim, não deixa de ser também um filme sobre uma sociedade tão privilegiada que seu maior problema hoje é o enfado com o mundo - e essa verdade profunda talvez seja chocante demais para a gente lidar, nós, os não-dinamarqueses.
O que então tornaria Druk, metafórica e ironicamente, um filme a que se assiste embriagado. Vinterberg recorre a todo tipo de familiaridade para nos amaciar aos poucos: satiriza a política, encerra a adolescência na esfera da alienação e da inconsequência, lamenta dramas domésticos consagrados do mundo masculino como crianças trabalhosas e esposas carrascas. Tudo isso é “universal” na medida em que são alvos fáceis em qualquer lugar: toda política é “satirizável”, os adolescentes nunca estão presentes para se defender, e as mulheres continuam ocupadas lá com os problemas do mundo real. Essa é a bolha a que o filme nos convida, confortável como um conhaque.
Estourando essa bolha, porém, revelam-se ao espectador as coisas dinamarquesas que ficaram subterrâneas por dissociação - e elas são fascinantes para nós, porque não nos dizem respeito, em absoluto. Isso vai desde a resposta escandinava à embriaguez, que é desconcertantemente anti-erótica (até o superbritânico Ou Tudo ou Nada se permite acessar pulsões secretas, enquanto em Druk o máximo da fantasia é a velha lutinha dos meninos no começo do filme) até o entendimento que se faz do desvario (“O que fulano faria agora se estivesse aqui?”, Mikkelsen pergunta, e a resposta é tão ~louca~ quanto ir a um restaurante, comer camarões sem a casca e as perninhas).
Enquanto o mundo atravessa a pandemia, em Copenhague o assunto do momento é o papel triunfante de Churchill na guerra. A decisão de Vinterberg de cortar a narrativa com cartelas pretas até na hora de mostrar mensagens de celular - ou seja, de resolver questões dramáticas “fora do filme” - só reforça essa sensação de deslocamento e de alienação. O anacronismo chocante de testemunhar os privilégios dinamarqueses em plenos anos 2020 não deixa de ser um fator de coincidência que contribui para o apelo do filme. Ou anti-apelo, por assim dizer.
Se tirarmos toda a dissonância, porém, talvez Druk não tenha muito mais a oferecer além das lições de moral sobre a hipocrisia escandinava, tema a que Vinterberg sempre retorna como seu porto seguro, desde que Festa de Família o projetou mundialmente no longínquo ano de 1998, quando o cinema dinamarquês ainda reivindicava para si alguma relevância no cenário dos festivais. Druk é o que acontece quando os assuntos e principalmente os problemas acabam.
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