sábado, 25 de dezembro de 2021

Jaime Spitzcovsky Telefonemas do fim do império soviético, FSP

 Um telefonema de Moscou interrompeu, em 1991, as celebrações de Natal da família Bush, em Camp David. Do outro lado da linha, em busca do colega norte-americano, estava o presidente soviético, Mikhail Gorbatchov, menos de duas horas antes de renunciar, deixar o Kremlin e sacramentar o fim da URSS, um dos personagens centrais do século 20.

Bush agradeceu a deferência. Pela segunda vez, naquele mês fatídico para o império bolchevique, o presidente norte-americano era tratado com zelo por um interlocutor russo. No dia 8, havia recebido uma chamada de Boris Ieltsin, para saber, antes mesmo de Gorbatchov, da desintegração soviética.

O líder soviético Mikhail Gorbatchov, faz ligação do Mobira Cityman, primeiro telefone celular da Nokia. (Foto: Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O líder soviético Mikhail Gorbatchov


"Hoje, um evento muito importante ocorreu em nosso país, e quero eu mesmo lhe informar, antes que saiba pela imprensa", disse o líder russo. No começo da conversa, o relógio do Salão Oval da Casa Branca apontava 13h08. Era um domingo.

Ieltsin estava ladeado por líderes da Belarus e da Ucrânia, então unidades, assim como a Rússia, da URSS. O país multiétnico era formado por 15 repúblicas; na prática, províncias controladas por um Kremlin centralizador e ditatorial.

Nos anos 1980, evidenciou-se o colapso do sistema. Gorbatchov tentou salvá-lo, com reformas responsáveis por inédita abertura política e por trágica crise econômica, a maior desde a Segunda Guerra Mundial.

Fortalecidos com promessas de "terapias de choque" na economia e com discursos separatistas, os líderes russo, belarusso e ucraniano se reuniram em Belarus e anunciaram, a 8 de dezembro de 1991, o fim da URSS. Passariam a não mais reconhecer o poder central.

"Constatamos razões objetivas para que a formação de Estados independentes se transformasse numa realidade", ponderou Ieltsin no diálogo com Bush. Depois de detalhar a iniciativa, o líder russo observou: "Preciso lhe dizer confidencialmente, o presidente Gorbatchov não sabe desses resultados".

Segundo a transcrição oficial da conversa, disponível na web, Ieltsin emendou, sobre Gorbatchov: "Certamente vamos enviar-lhe de imediato o texto do nosso acordo, pois ele seguramente terá de tomar decisões em seu nível".

Antevia-se, claro, a renúncia gorbatchovista, anunciada a 25 de dezembro de 1991. O Prêmio Nobel da Paz de 1990, adulado no Ocidente sobretudo por esforços para demolir a Guerra Fria, sofria incontornável derrota política.

Nos diálogos de dezembro com os EUA, Gorbatchov e Ieltsin convergiram em dois pontos. Esforçaram-se para desfazer temores sobre controle do arsenal nuclear e enfatizaram desejos de preservar e aprofundar as relações entre Washington e Moscou.

O caso de Ieltsin foi ainda mais emblemático. Antecipar a informação do fim da URSS a Bush embutia, claramente, a oferta de estreitamento de laços entre o Kremlin e a Casa Branca, com o desejo russo de receber urgente apoio norte-americano para a recuperação econômica.

A leitura norte-americana do momento histórico foi distinta. Prevaleceu, entre democratas e republicanos, a desconfiança em relação a líderes russos com novas propostas, mas oriundos do sistema soviético.

Em Washington, a visão correspondia a contribuir para uma "Rússia estável, mas enfraquecida". Em Moscou, desde então, fortaleceu-se a ideia de o flerte com os EUA ter sido um equívoco colossal.

Percepções diferentes de um momento histórico ocorrido três décadas atrás alimentam até hoje a rivalidade russo-americana. Já está na hora, para o bem da estabilidade global, de a Casa Branca e o Kremlin se entenderem, definitivamente, sobre o significado dos estertores do século 20.


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