Tem sido um dos dramas leves das festas de fim de ano. Incapazes de encontrar um motorista por aplicativo, familiares são obrigados a procurar um táxi em plena rua ou a recorrer às caronas de amigos. Essa realidade inteiramente nova para uma sociedade que se acostumou a ter sempre um motorista à disposição tem sido tratada como mais um elemento insólito da pandemia. A ausência de veículos nas plataformas seria, segundo as principais empresas do setor, uma situação transitória devido a uma conjunção de fatores que desequilibraram o mercado, como o aumento dos passageiros e a alta de preços da gasolina.
O caráter global da crise sugere que as razões são mais profundas. Alegando que o trabalho é financeiramente inviável, os motoristas estão aceitando um quinto das viagens que lhes são oferecidas pelo aplicativo em países com o Reino Unido. Viagens triviais a partir dos aeroportos de Los Angeles, Mumbai e Paris podem custar o preço de uma passagem aérea. O CEO da Uber Dara Khosrowshahi está sendo obrigado a abandonar os mantras da corporação, buscando diálogo com autoridades municipais, com quem a empresa sempre optou pela relação de força no passado, e até formando parcerias com os táxis amarelos de Nova Iorque, símbolos do "velho mundo" que ela tinha prometido transformar em relíquia de outro tempo.
O que explica esse movimento espontâneo e global iniciado pelos próprios motoristas, que poderá ser lembrado no futuro como a primeira grande greve da economia digital? Na última década a Uber transformou o mercado de transporte criando uma ilusão de modernidade para o trabalhador informal, elevado pela empresa à categoria inovadora e elegante de empreendedor digital. O ambiente político era particularmente favorável a essa revolução cultural. Em 2016, o governo Temer vinculava a reforma trabalhista às oportunidades da "uberização" enquanto o premiê indiano Narendra Modi fazia da Uber a principal parceira da Start Up India, um dos programas-bandeiras do seu novo governo.
Mas a pandemia expôs a dura realidade da servidão digital: Transformados à força em trabalhadores essenciais, os motoristas constam entre as principais vítimas econômicas e sanitárias da pandemia ao redor do mundo. O trauma levou-os a se aproximarem dos mecanismos tradicionais de contestação social. Na Índia, uma organização com milhões de motoristas forçou o governo Modi a votar um pacote de assistência social que inclui pensão e acesso a serviços de saúde. Em setembro, um tribunal da Holanda, onde a Uber tem a sua sede global, estabeleceu que os motoristas da empresa devem ser reconhecidos como trabalhadores da empresa, acompanhando decisões semelhantes em tribunais californianos e londrinos. Apesar das dificuldades, a Uber anunciou o seu primeiro lucro operacional em novembro de 2021. Mas o seu modelo de negócios, baseado no mito dos motoristas-empreendedores, poderá não sobreviver à pandemia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário