A pandemia ainda não produziu obras de arte dignas desse nome. Mas existe um filme, por acaso ruim, que captura o espírito do presente: "Tempo", de M. Night Shyamalan.
Conto rápido: uma família chega a um resort turístico. Pai, mãe e crianças, juntamente com outros hóspedes, são levados a uma praia "paradisíaca", para usar o adjetivo cafona das agências de viagens.
Mas o paraíso é enganador: incapazes de sair da praia quando as tragédias começam a acontecer, os turistas percebem que envelhecem rapidamente. Passam algumas horas e já passou uma década. O que significa que os velhos morrem depressa; o pessoal de meia idade fica rapidamente velho (e doente); as crianças viram adolescentes em questão de minutos.
Foi o que senti com essa pandemia. Corrijo. Foi o que senti nos reencontros natalinos desse ano: a família e os amigos que já não se viam há dois anos envelheceram duas décadas. As crianças cresceram demasiado depressa. Os adultos apareceram com rugas, cabelos grisalhos, cabelo nenhum. E barrigas salientes.
Essa sensação é agravada pelo fato de nos termos despedido ontem, ou seja, algures em março de 2020. Mas então passou um dia, porque os dias foram sempre iguais, repetitivos, indistintos, e estamos às portas de 2022.
A sensação não é pessoal. É geral. Quando reapareci aos olhos deles, havia também um esgar de surpresa, que só por decoro não se transformou em grito de horror. Percebo a sensação. Eles despediram-se de uma pessoa e eis que outra tomou o meu lugar.
Moral da história?
Esse vírus não levou apenas vidas, economias, projetos. Levou também o que existe de mais precioso em qualquer existência: tempo. O tempo das memórias, das conversas e das experiências que jamais teremos de volta.
É um roubo imperdoável. E isso para ficarmos em Portugal, onde vivo. Tremo só de pensar o que vou encontrar no Brasil daqui a uns meses, quando regressar ao país depois de um hiato de três anos. Terão passado três décadas?
Vou falando com amigos brasileiros. Mas pressinto que, no caso deles, houve duas pandemias, não apenas uma: a do vírus e a do governo. Isso me permitiu cartografar, só pelas suas vozes, um envelhecimento brutal, duas vezes mais rápido que o meu.
No início, quando Bolsonaro ainda era uma criança, elas conservavam a vitalidade dos resistentes. Mas então os meses passaram, os anos também, e comecei a notar que aqueles timbres foram perdendo qualquer coisa. Frescor, talvez. Como se a política brasileira tivesse virado um tumor gigantesco, que consome todas as energias dos pacientes.
Não falo apenas de energia física, mas psíquica: obsessivamente, qualquer conversa resvalava sempre para Bolsonaro, seus filhos e seus seguidores.
E quando eu tentava mudar de assunto, porque no esquema geral do mundo o governo Bolsonaro não passa de um detalhe (privilégios de quem vive longe...), sentia que eles estavam reféns do personagem, como se as sombras da caverna fossem a única realidade possível ou permitida.
É nesses momentos que se entende melhor a sábia observação de que os povos mais felizes são aqueles que desconhecem o nome dos seus governantes.
Agora que um novo ano caminha para nós, esse é o meu desejo para 2022: que o personagem vá embora. Não só pela saúde democrática do Brasil. Minhas razões são mais prosaicas, mais egoístas. Eu só quero os meus amigos de volta.
*
P.S. – Enquanto o ano não acaba, e fazendo jus à tradição, deixo ficar meus filmes, livros e discos de 2021. Colheita modesta, admito, mas meu tempo não foi perdido com os filmes de Rebecca Hall ("Identidade"), Paolo Sorrentino ("A Mão de Deus", uma grande surpresa) e Alexander Nanau (o documentário "Colectiv", obrigatório para qualquer jornalista ou candidato à profissão).
Nos livros, a prosa magistral de Julian Barnes na recriação da Belle Époque (em "O Homem do Casaco Vermelho"), o novo ensaio de Paul Franco ("Rousseau, Nietzsche and the Image of the Human") e os ensaios de Andrew Sullivan, que trazem o conservadorismo para o século 21 ("Out on a Limb: Selected Writing, 1989 – 2021"; experimentem, reacionários, e aprendam alguma coisa).
Musicalmente falando, oscilei entre o Carnegie Hall (com "Mingus at Carnegie Hall") e o Hudson Theatre (com uma nova versão de "Sunday in the Park with George").
Nas séries, "Succession" (que deveria terminar com essa temporada) e uma obra-prima antiga de David Simon a que só agora assisti ("Show Me a Hero").
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