A fórmula até parece similar: militares alegam que houve fraude na eleição, que o governo civil é corrupto e ineficaz para mitigar as desigualdades sociais. Tomam, então, o poder, asfixiam liberdades civis e estabelecem um calendário fantasma de transição para a democracia. Com esse passo a passo já clássico, sete tentativas de golpe de Estado ocorreram no mundo em 2021, e cinco delas tiveram êxito.
O número é o maior das últimas duas décadas, de acordo com monitoramento dos professores Jonathan Powell e Clayton Thyne, das universidades Central da Flórida e Kentucky, respectivamente.
O balanço leva em conta as tentativas —frustradas ou não— de tirar um líder do poder, mas não inclui casos em que o próprio presidente manobra a Constituição do país numa escalada autoritária, como ocorreu na Tunísia neste ano, por exemplo.
À Folha Powell diz que uma fusão de elementos fez de 2021 um ano mais propenso a golpes. O primeiro fator está relacionado ao cenário doméstico das nações: "A falta de legitimidade dos líderes locais leva à insatisfação popular, o que faz as Forças Armadas pensarem que um golpe seria celebrado". A questão pode ser doméstica, mas o professor afirma que há uma crise global de legitimidade das lideranças.
O segundo fator, explica, seria a pandemia de Covid, quando a comunidade internacional se tornou menos pró-ativa para responder a golpes, já que os esforços de cada país estavam voltados para o combate da crise sanitária em seus próprios territórios.
O professor de ciência política Jonathan Phillips, da USP, faz análise semelhante. Ele diz que as tensões internas sempre têm maior peso decisivo para um golpe, mas destaca que, neste ano, as condições internacionais foram mais relevantes que o normal. "Em termos de custo-benefício, os militares pensaram que seria mais lucrativo e menos custoso fazer o golpe nessa janela de atenção internacional."
Phillips, graduado em Oxford e pós-graduado pela Harvard, acrescenta que a maioria dos países que sofreram golpes neste ano não tinham regimes democráticos no poder, mas, sim, governos autoritários, o que também pesa na balança. Além disso, eram sociedades militarizadas, onde as Forças Armadas há muito interferiam na política.
Mianmar, Chade, Mali, Guiné e Sudão seguiram o roteiro acima descrito e viveram golpes de Estado em 2021. Confira, abaixo, como cada país está no final deste ano e quais as perspectivas.
MIANMAR
A curta experiência democrática de Mianmar, que teve início em 2011, foi interrompida em 1º de fevereiro, quando o país do Sudeste Asiático estreou a lista de nações que foram palco de golpes de Estado neste ano. Naquele dia, as Forças Armadas, que não haviam deixado de ocupar espaço na política institucional, alegaram fraude nas eleições e destituíram o governo civil do poder.
O golpe ocorreu após o partido apoiado pelos militares ser derrotado nas legislativas. Lideranças foram detidas, entre elas Suu Kyi, 76, ganhadora do Nobel da Paz e principal líder civil do país. O episódio levou a uma onda de protestos sociais, violentamente reprimidos.
O saldo de mortos pelo regime chegava a 1.346 na segunda quinzena de dezembro, segundo levantamento da Associação de Assistência a Presos Políticos de Mianmar. Mais de 10 mil pessoas foram detidas, e pelo menos 75 foram condenadas à pena de morte.
Houve, ainda, amplo movimento repressivo contra a imprensa. Cerca de 26 jornalistas foram detidos no país, segundo levantamento do Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ, na sigla em inglês) —o número fez de Mianmar o segundo país que mais encarcerou profissionais da imprensa neste ano, atrás apenas da China (50).
A junta que assumiu o governo do país asiático afirmou que irá promover eleições em agosto de 2023. Os generais têm tentado, ainda que sem sucesso, alçar reconhecimento diplomático —as Nações Unidas, por exemplo, relutam em aceitar o representante designado pelos militares para a Assembleia-Geral do organismo multilateral.
Outra consequência do golpe foi o avanço, a galope, da pobreza no país. Projeções do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) mostram que metade da população de Mianmar pode estar abaixo da linha da pobreza no próximo ano.
CHADE
O Chade deu sequência neste ano à tradição de sucessões presidenciais tensas e golpes de Estado, quando o filho do ditador Idriss Déby assumiu o poder após a morte do pai, dissolvendo o Congresso e consolidando a dinastia Déby no comando do país.
Déby pai comandava o país do centro-norte africano desde um golpe de estado em 1990, que tirou do poder o ditador Hissène Habré. Em abril deste ano, ele venceu a sexta eleição consecutiva, contestada pela oposição e por grupos que lançaram uma ofensiva militar para retirá-lo do poder, após acusações de escalada autoritária.
O presidente foi para a guerra lutar contra os rebeldes e morreu no campo de batalha dias depois, em 20 de abril. Pela Constituição, quem deveria suceder o mandatário nesses casos é o chefe da Assembleia Nacional, mas não foi o que aconteceu.
Um grupo de 15 generais criou um Conselho Militar de Transição, que dissolveu o Congresso e colocou o filho do mandatário morto, Mahamat Idriss Déby, para liderar a nação por 18 meses, quando prometeu convocar novas eleições.
O processo foi visto como um golpe, já que as regras de sucessão não foram respeitadas. Se parte do país já manifestava insatisfação com o pai, a nomeação do filho para liderar o Chade sem novas eleições inflamou protestos, que foram reprimidos de forma violenta e deixaram mortos e centenas de pessoas presas. A ofensiva dos rebeldes se manteve em campo, até ser derrotada pela junta militar em maio.
A tomada de poder foi apoiada por aliados do país como a França, da qual o Chade foi colônia até 1960. O ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian, afirmou que havia "razões de segurança excepcionais que precisavam ser garantidas para estabilizar o país".
O regime tenta dar um ar de normalidade ao país assolado por miséria e fome. Em setembro, nomeou uma nova Assembleia Nacional —que não foi eleita, mas escolhida pela junta. Dois meses depois, anistiou 296 pessoas que haviam sido acusadas durante os protestos por "crimes de opinião", "terrorismo" e "dano à integridade do Estado".
MALI
O Mali sofreu em 2021 um golpe dentro de um golpe. No ano passado, em meio a protestos que pediam a renúncia do então presidente Ibrahim Boubacar Keita, o mandatário foi preso e deposto, em movimento liderado pelo coronel Assimi Goïta. Bah Ndaw passou a comandar o país, em um governo de transição que deveria durar até fevereiro de 2022.
Em maio deste ano, no entanto, Goïta, que se tornou vice-presidente interino, mandou deter e depôs Ndaw, além do premiê. A justificativa foi uma remodelação do governo que excluiu dos ministérios dois oficiais que participaram ativamente do golpe em 2020. Segundo Goïta, ele não foi consultado, o que violaria a carta de transição.
Havia ainda, porém, a promessa de manter as eleições para fim de fevereiro de 2022. Mas no início de novembro os integrantes da Cedeao (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental) souberam que as autoridades malinesas não iriam cumprir o prazo.
A Cedeao, então, ameaçou com sanções, o que forçou Goïta a se comprometer com uma nova data: o coronel prometeu apresentar um novo cronograma até 31 de janeiro. Na última reunião, em 12 de dezembro, a entidade subiu o tom e reforçou a promessa de sanções a partir de 1º de janeiro caso o prazo não fosse respeitado. A União Europeia também anunciou que deve adotar medidas.
Soma-se a isso um contexto de extrema insegurança, com o norte do país tomado por ataques jihadistas. A junta no poder ameaça recorrer ao Grupo Wagner, uma organização paramilitar que atua na África Subsaariana e é suspeita de ter ligações com o presidente russo, Vladimir Putin.
GUINÉ
Quando Alpha Condé, figura de oposição aos governos autoritários que historicamente dominaram a Guiné, foi eleito, em 2010, para a Presidência do país nas primeiras eleições democráticas desde a independência —conquistada em 1958—, a população guineense viu despontar a chance de, enfim, viver sob uma democracia. Pouco mais de uma década depois, a esperança foi frustrada.
Condé, 83, foi reeleito em 2015. Em 2020, quando uma trava na Constituição o impedia de disputar o terceiro mandato, costurou uma reforma no documento. Alegando que promoveria os direitos humanos, como a proibição da circuncisão feminina, alterou a Carta Magna em março daquele ano, e conseguiu reeleger-se em outubro. A oposição alega que houve fraude no processo eleitoral.
Com os argumentos de que era preciso colocar fim ao culto das personalidades políticas na Guiné e que o governo de Condé foi incapaz de melhorar os indicadores sociais, o coronel Mamady Doumbouya, líder do Grupo de Forças Especiais, liderou um golpe de Estado no país em 5 de setembro e sequestrou o presidente, que foi liberado somente três meses depois.
Doumbouya, 41, que recebeu treinamento na França e já serviu em missões no Afeganistão, autodeclarou-se presidente de transição e formou um governo com Mohamed Beavogui, ex-subsecretário-geral das Nações Unidas, como premiê. Não esclareceu, porém, qual será o calendário de retorno à ordem constitucional.
Organizações internacionais, como a União Africana e a Cedeao, aplicaram sanções ao país e o excluíram de seus processos decisórios. A Cedeao pede que eleições sejam realizadas em, no máximo, seis meses, e afirma que, caso um calendário não seja estabelecido até o final deste ano, novas sanções serão aplicadas.
SUDÃO
Foi há três anos, em dezembro de 2018, que os sudaneses começaram a sair às ruas para protestar contra as condições de vida sob o regime de Omar al-Bashir, que estava no poder havia três décadas. Ao longo dos meses seguintes, os manifestantes conseguiram derrubar o ditador e arrancar das Forças Armadas o compromisso de que iriam entregar em breve o poder para um governo civil escolhido por meio do voto. O Sudão caminhava, enfim, em direção à democracia.
Tudo mudou em 25 de outubro deste ano, quando tropas lideradas pelo general Abdel Fattah al-Burhan deram um golpe de Estado e prenderam os integrantes civis do governo de transição. Os militares decretaram estado de emergência e bloquearam as telecomunicações. Segundo a versão dos golpistas, o movimento visava impedir a eclosão de uma guerra civil no país do Norte da África.
Mesmo diante da repressão brutal das forças de segurança, que já deixou ao menos 40 mortos, multidões têm participado em marchas recorrentes para exigir a saída dos militares. Sob pressão, as Forças Armadas libertaram e restituíram Abdallah Hamdok, o premiê civil deposto no golpe de Estado —o acordo foi celebrado pela comunidade internacional, mas segue sendo rejeitado pelas ruas do país.
Para Samahir Elmubarak, porta-voz da Associação de Profissionais Sudaneses (SPA, na sigla em inglês), principal grupo à frente dos protestos, a população não aceita mais o antigo esquema de partilha de poder com os militares. "O povo sudanês deixou claro ao longo desta revolução que queremos viver em uma democracia", diz ela à Folha desde Cartum. "As Forças Armadas buscam dar um verniz de legitimidade ao golpe. Se este regime for aceito, golpistas em outros países se sentirão encorajados a tomar o poder por saber que não sofrerão consequências".
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