Mostras de preconceito em obras devem ser contextualizadas, não suprimidas
A discussão sobre como lidar com o racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato parece infindável.
Há oito anos, a proposta de sustar a distribuição de “Caçadas de Pedrinho” em escolas públicas chegou ao Supremo Tribunal Federal. Agora, a reedição de “A Menina do Narizinho Arrebitado” pela bisneta do autor provocou reações até de membros um tanto ociosos do governo Jair Bolsonaro.
A revisão de Cleo Monteiro Lobato procurou alterar ou suprimir “passagens problemáticas”, como a que se referia a Tia Nastácia como “negra de estimação”.
Bastou para que Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares que fez de sua marca a oposição ao movimento negro, fosse às redes sociais para denunciar aquilo como uma “mutilação politicamente correta”. Foi seguido por Mario Frias, secretário da Cultura, que achou a mudança uma vergonha.
O argumento central de Camargo, de que não há racismo na obra de Lobato, não se sustenta. Não deixam dúvidas a construção estereotipada de Nastácia e as menções à cor de sua pele como um defeito, por exemplo quando Narizinho diz que ela “é preta só por fora, e não de nascença”.
Não é por isso, contudo, que se deve defender que os trechos racistas sejam simplesmente apagados dos livros do escritor.
Primeiro porque a intenção de ajustar clássicos literários a um certo ideal político será sempre infrutífera. Leitura assim encontrará o que corrigir em qualquer obra de qualquer geração passada e corre o risco, além disso, de eliminar sutilezas e contradições relevantes.
Em segundo lugar, porque o exercício é fútil. A literatura tem, entre suas funções, a de documento histórico de uma época e do pensamento de seu autor. Alterar trechos, não importa por qual motivo bem-intencionado, causará inevitável distorção do conteúdo.
A meta de evitar que crianças encampem ideias preconceituosas é alcançável por outros meios, como notas de contexto ou orientação de pais e professores. Pode-se também escolher outra coisa para ler.
Em canais de streaming, tem se tornado mais comum a adoção de avisos que alertam para “cultura desatualizada”, antecipando que o filme mostrará práticas ou discursos discriminatórios —o que suscita debate sobre certa infantilização do espectador.
Ora, se uma obra reflete uma sensibilidade ultrapassada, é natural que seja logo esquecida. E se outras qualidades impedirem essa obsolescência, seus problemas continuarão sob o escrutínio saudável do debate público.
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